Quando falamos em grandes problemas de saúde pública, costumamos pensar em diabetes, hipertensão, obesidade, câncer… Mas um novo estudo publicado na The Lancet, uma das principais revistas de divulgação científica, coloca no mesmo patamar algo que muitas vezes é visto apenas como questão social: a violência contra mulheres e crianças.
Segundo o levantamento, que analisou dados de 204 países e territórios — entre eles Brasil, Estados Unidos, Índia, China, África do Sul e diversas nações da Europa e da América Latina —, só em 2023, 608 milhões de mulheres com 15 anos ou mais sofreram algum tipo de agressão por parceiros ou ex-parceiros. Além disso, 1,01 bilhão de pessoas adultas no mundo vivenciaram violência sexual quando eram crianças.
O impacto disso fica mais claro quando se observa os chamados anos de vida saudável perdidos — uma forma de medir quanto tempo de vida ativa e produtiva é comprometido por doenças, incapacidades ou mortes precoces.
Para ter ideia, a violência por parceiros ou ex-parceiros tirou 18,5 milhões de anos saudáveis de mulheres. Isso apenas em 2023. Já entre pessoas que sofreram abuso sexual antes dos 18 anos, o total chega a 32,2 milhões de anos eliminados.
E isso não se limita aos danos físicos. As consequências também são mentais, emocionais e sociais, acumuladas ao longo dos anos. O estudo mostra que experiências de violência aumentam significativamente o risco de ansiedade, depressão, automutilação, uso problemático de substâncias e até transtornos psiquiátricos mais graves, como esquizofrenia. Também elevam a probabilidade de doenças crônicas, como HIV/AIDS, além de complicações na gestação e no parto.
“As violências contra mulheres e crianças constituem violações individuais dos direitos humanos e, coletivamente, representam uma crise global de saúde subestimada“, escrevem os autores.
Homicídios, complicações gestacionais e saúde mental
Quando o estudo analisa os efeitos da violência doméstica entre mulheres, há impactos relacionados a ansiedade, depressão, autolesão, HIV/AIDS, homicídios, transtornos relacionados ao uso de drogas e complicações na gestação, como aborto e hemorragia materna. Porém, é na saúde mental que o cenário pesa mais.
Os transtornos de ansiedade associados a esses episódios lideram, com 5,43 milhões de anos de vida saudável perdidos. Em seguida vêm a depressão, com 3,96 milhões, e a autolesão, que se aproxima de 3 milhões. Além disso, só em 2023, a violência de parceiros íntimos esteve associada a 40 mil mortes por HIV/Aids e a mais de 28 mil homicídios, cometidos pelos próprios parceiros ou ex-parceiros.
No caso da violência sexual, a lista de impactos é ainda mais extensa. O estudo relaciona essas experiências a 14 tipos de desfechos de saúde, que vão de doenças infecciosas a transtornos mentais. Entre eles, a automutilação, responsável por 6,71 milhões de anos de vida saudável perdidos, e a esquizofrenia, com 4,15 milhões, foram os principais.
Mas a lista inclui ainda transtornos por uso de álcool e drogas, transtorno bipolar, bulimia, asma, infecções sexualmente transmissíveis (como o HIV/Aids) e depressão, que sozinha responde por 85 mil anos de vida saudável perdidos entre pessoas violentadas sexualmente.
Falta de recursos
Embora os dados chamem atenção, o relatório lembra que as diferenças geográficas não refletem apenas realidades distintas, mas também expõem desigualdades na capacidade de registrar, notificar e diagnosticar casos de violência e seus impactos. “Normas culturais, dinâmicas de gênero e falhas na coleta de dados podem subestimar a verdadeira dimensão do problema. Sistemas de saúde com baixa capacidade diagnóstica também contribuem para essas discrepâncias”, aponta o texto.
Ainda assim, até onde foi possível estimar, os números mostram que o cenário está longe de ser discreto. “E as consequências não se limitam à vida das sobreviventes; elas atingem também famílias, redes de relacionamento e comunidades inteiras, alimentando ciclos de violência e traumas que podem atravessar gerações”, destaca o documento.
Atualmente, é comum ver entidades internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a ONU Mulheres e UNICEF, se posicionando sobre o tema. Mesmo com esses movimentos, os pesquisadores lembram que “a maioria dos países ainda não dispõe dos recursos essenciais, de uma legislação eficaz ou de mecanismos robustos de aplicação da lei necessários para enfrentar o problema”.
Por isso, defendem a expansão de medidas de prevenção e de respostas mais direcionadas. Entre elas, integrar apoio qualificado e multifacetado às sobreviventes em programas de saúde da mulher e em iniciativas mais amplas de saúde pública. “Atualmente, menos de 1% dos recursos de ajuda externa é destinado à violência de gênero, um indicativo claro de que a priorização ainda é insuficiente e precisa mudar”, concluem os autores.