Ele atravessou 200 milhões de quilômetros de distância, veio voando de Marte há milhões de anos, como um viajante do tempo, e sobreviveu com galhardia à escuridão do infinito — aqui na Terra, contudo, produziu uma cizânia. Um meteorito marciano de 25 quilos, batizado de NWA 16788, descoberto em novembro de 2023 no deserto de Agadez, em Níger, foi leiloado recentemente pela Sotheby’s de Nova York por 5,3 milhões de dólares. “É um pedaço de Marte que sobreviveu a uma jornada insana”, celebrou Cassandra Hatton, chefe do setor de ciência e cultura pop (isso mesmo) da casa de leilões. Tudo muito bacana, não fosse um colossal detalhe. Pouco depois de o martelo ser batido para um comprador anônimo, o governo nigerino anunciou a abertura de uma investigação sobre a legalidade da exportação da rocha. O episódio reacendeu uma acalorada discussão: afinal, a quem pertencem os fragmentos de outros mundos que caem por aqui?
A resposta tem nuances. Não há, a rigor, legislação internacional unificada sobre meteoritos. Cada país define regras próprias, quando existem. Nos Estados Unidos, a lei garante que, se uma rocha espacial cair em terreno privado, ela passa a ser do dono da terra. Em Níger, até agora, há confusão. A legislação de 1997 sobre patrimônio cultural cita “espécimes mineralógicos raros”, mas não menciona meteoritos. Essa brecha sustenta a investigação em andamento. A Sotheby’s, por seu lado, insiste na correção da papelada. A lacuna jurídica, porém, deu pano para a manga de uma guerra nas estrelas. Há interesses científicos, sem dúvida, mas o jogo comercial predomina.

Parte da explicação para a valorização do objeto está no fascínio que Marte exerce. Entre os mais de 77 000 meteoritos catalogados na Terra, apenas cerca de 400 têm origem marciana. O NWA 16788 é 70% maior que o segundo maior fragmento já identificado do planeta vermelho e se distingue pela superfície vítrea resultante da travessia da atmosfera terrestre. Para os astrônomos e geólogos, o interesse está no que essas pedras revelam sobre a formação e a geologia marcianas. Para o mercado, o atrativo é outro. “O preço acaba sendo elevado não pela raridade científica, mas pela ânsia de colecionadores em ter algo que mais ninguém tem”, afirma Diana Paula de Pinho, astroquímica do Laboratório de Análise de Material Espacial e professora no Observatório do Valongo. O mecanismo é idêntico ao que movimenta o comércio de obras de arte: exclusividade é sinônimo de cifras milionárias.
O interesse por essas rochas não é recente, e o Brasil tem parte no negócio. Fez furor a descoberta do meteorito Bendegó em 1784 no sertão baiano. Com 5,3 toneladas, foi transportado em uma epopeia digna de romance até o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, onde permanece até hoje. Einstein, quando esteve no país, em 1925, fez questão de conhecê-lo. Outro interessante episódio ocorreu em 2021. Um lavrador da cidade de Socorro, em Pernambuco, havia guardado desde 2019 uma pedra de 4,5 quilos, sem desconfiar de sua origem. Fizeram-no, depois de muita insistência, dada a estranheza do mineral, enviá-lo a um familiar em Miami. De lá, a pedra foi parar nas mãos do americano Michael Farmer, um dos maiores negociantes do setor. Ele cortou um fragmento de 20 gramas e o remeteu à Universidade do Novo México, que confirmou se tratar de um raro meteorito marciano. O fragmento foi depois revendido por 800 000 dólares a um colecionador. A ciência brasileira saiu de mãos abanando.

Há, agora, pressão para organizar a bagunça. Em 2020, dois textos opostos tramitaram no Congresso: um que tornava os meteoritos propriedade exclusiva do Estado e outro que os liberava totalmente ao mercado. Nenhum dos dois atendeu à complexidade do tema. Desde então, instituições como o Museu Nacional, a Sociedade Brasileira de Geologia e a Sociedade Astronômica Brasileira articulam uma proposta de equilíbrio. O substitutivo em discussão prevê que o meteorito pertença a quem o encontrar, mas exige o registro em até 180 dias e a doação de uma fração — não inferior a 30 gramas nem superior a 1 quilo — a uma instituição de pesquisa. Também estabelece que a rocha permaneça no Brasil por pelo menos um ano, tempo para classificação científica e eventual aquisição por museus. A polêmica vai longe ainda e só há uma certeza: a solução para o problema não vai cair do céu.
Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2025, edição nº 2960