A descoberta de uma gravidez desejada vem junto da sensação, tão comum para boa parte das mulheres, de que a maternidade já começou ali, com aquele ponto de vida projetado no ultrassom. Planos, expectativas, medos — tudo está embutido no projeto de ter um filho e aflora bem antes de ele vir ao mundo. Por isso, perder o bebê em meio a esse turbilhão emocional é um baque e tanto, levando em muitos casos à tristeza profunda, às vezes à zona escura da depressão. Posto na prateleira dos dramas que podem ser administrados — afinal, a criança nem nasceu —, o aborto espontâneo é um daqueles assuntos pouco falados, justamente pela incompreensão em torno da dor feminina que provoca. Mas é fenômeno para lá de incidente. De acordo com um levantamento da revista científica Lancet, a cada minuto 44 mulheres abortam involuntariamente, o equivalente a 15% da população mundial que engravida.
Apesar de ainda repousar no escaninho dos tabus, o sofrimento que se instala para tanta gente (inclusive para o pai) a partir de um aborto espontâneo começa a sair da sombra em que por tanto tempo ficou. É salutar movimento no campo do comportamento, ao lançar luz sobre assuntos antes calados. E, como costuma ocorrer, as celebridades vêm ajudando a dar visibilidade ao tema, ao compartilhar sua dor nas redes. Recentemente, a atriz Micheli Machado, 43 anos, perdeu a filha, a quem já havia escolhido chamar de Liz, aos nove meses de gestação. Ela e o marido, o também ator Robson Nunes, pais de Morena, de 13, correram para o hospital ao notar a ausência de movimentação na barriga. Foi devastador. Não se ouviam mais batimentos cardíacos, e Micheli precisou passar por uma cesárea de emergência, procedimento padrão acima das vinte semanas de gravidez. “A casa, que era para estar com choro e cheiro de bebê, agora guarda um silêncio infinito”, postou.

Está longe de ser um drama incomum. Dados do Ministério da Saúde contabilizaram cerca de 20 000 óbitos fetais no Brasil em 2024. Especialistas dizem se tratar de um luto de natureza bem distinta, daqueles difíceis de assentar por romper a ordem esperada dos acontecimentos. “Ao descobrir uma gravidez, ninguém se prepara para a morte. Essa mãe carrega para sempre o peso daquilo que não foi vivido”, afirma a psicóloga Carolina Oliva. É muito comum que a mulher acabe se trancando em meio à angústia e à frustração e só venha a cutucar o fato tempos depois. Foi assim com a apresentadora Sabrina Sato, 44, que recém revelou ter passado por dois abortos espontâneos no ano passado, ainda no princípio da gestação. “Atravessei o luto trabalhando”, contou a artista, casada com o ator Nicolas Prattes e mãe de Zoe, de 6 anos, do relacionamento com o ex-marido, Duda Nagle.
Em hospitais e clínicas, onde a maioria das mulheres recebe a notícia, o tratamento costuma ser exclusivamente técnico, desconsiderando a delicadeza do que as faz estar lá. No jargão médico, são “casos rotineiros”. A especialista em marketing Claudia Ruiz, 52, nunca esqueceu o dia em que, há doze anos, descobriu em exame de rotina, aos quatro meses de gestação, que a filha já não tinha vida. “O médico foi insensível. Apenas informou que não havia mais batimentos”, relata ela, que é mãe de um jovem de 33 anos e estava animada para repetir a dose em fase madura. Como outras, Claudia precisou tomar remédios para expelir tecidos retidos e evitar infecções e hemorragias. “Doeu mais que um parto”, compara ela, que voltou para casa com um “desesperador vazio no corpo e na alma”.
Em maio, houve um avanço no país em relação a esta experiência tantas vezes invisível. O governo federal sancionou uma lei que garante três dias de licença a essas mulheres, além de apoio psicológico pelo SUS — um reconhecimento, mesmo que inicial, de um evento antes tratado como um simples “incidente obstétrico”. “Espera-se que a nova legislação inspire práticas mais humanizadas em hospitais e maternidades”, enfatiza Aline Avelar, especialista em direito das famílias. Esta é, porém, uma etapa de uma caminhada mais vasta, em que inúmeras mulheres não escapam de julgamentos nem de comentários que, embora bem-intencionados, não alcançam a extensão da perda — “pelo menos foi no início” ou “você pode tentar de novo” estão no rol. Para a apresentadora da TV Globo Tati Machado, 33 anos, a morte repentina de Rael, aos oito meses de gestação, deixou uma marca funda. “Me restaram planos, sonhos, expectativas. É angustiante saber que nosso primeiro encontro foi também o último”, escreveu ela, casada há doze anos com o cineasta Bruno Monteiro e que segue tentando uma nova gravidez.

Mesmo que as pesquisas apontem que a grande maioria dos abortos espontâneos (ou perdas gestacionais, quando a gravidez ultrapassa as vinte semanas) ocorre por falhas genéticas aleatórias, quem acompanha o dia a dia dessas mulheres observa um comportamento reincidente: elas ficam se perguntando o que de errado fizeram para levar àquele desfecho. “Todas podemos ter um óvulo com alguma alteração, assim como pode haver um espermatozoide modificado, o que pode gerar uma carga genética incompatível com a vida”, explica a ginecologista e obstetra Mara Rúbia. “É uma culpa que não deveriam carregar”, afirma a psicóloga e educadora perinatal Juliana Bessa.
Recai um peso sobre elas de logo dar a volta por cima e engravidar, para sanar a dor, o que ignora o fato de que cada qual tem o próprio tempo para elaborar o luto. “Diziam que eu devia superar, tentar mais uma vez, e comecei a me sentir muito cobrada”, desabafa a publicitária Juliana Leite, 33 anos, que um ano mais tarde, quando soube estar carregando na barriga Iara, hoje com 7 meses, se sentia pronta de novo para ser mãe. Ter conseguido cutucar capítulo tão doloroso e falar do que passou aos outros foi, para ela, a chave para seguir em frente.
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2025, edição nº 2950