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Um minuto de silêncio à era em que se brindava vinho com copo de requeijão

As fortes evidências do fim dos tempos dos vinhos de garrafão surgem na forma de diversas notícias, como as manchetes anunciando que produtores tradicionais de Jundiaí e São Roque, no interior de São Paulo, investem na produção de rótulos mais sofisticados como forma de se livrarem do estigma de venderem apenas as versões baratas e populares da bebida. Mesmo nos botecos e armazéns mais antigos, onde os vinhos de garrafão eram tão onipresentes nos balcões quanto os baleiros giratórios de vidros lotado de guloseimas, está cada vez mais difícil achar um exemplar das antigas. No caso de alguns dos grandes supermercados, nem se fala: os vinhos de garrafão já foram escorraçados de lá há um bom tempo.

Aos poucos, com a popularização por aqui do chamado vinho seco, o paladar de muitos brasileiros começou a mudar. Nada contra a evolução da espécie, claro. O salto de qualidade da produção nacional de vinhos é impressionante. Mesmo com a alta carga tributária nacional e a concorrência de argentinos e chilenos, entre outros, os rótulos daqui ganham espaço. Trata-se de uma batalha heroica, é preciso reconhecer — e aplaudir. Essa trajetória ascendente precisa ser harmonizada com a história do produto por aqui. Segundo um pensamento popular, a memória é o solo onde germina o futuro. Quem conhece suas raízes, cresce com mais força.

As raízes do vinho brasileiro remontam aos velhos garrafões, nos quais os imigrantes italianos que começavam a vida no Rio Grande do Sul traziam à mesa a bebida que era preparada em suas modestas propriedades. Depois de um tempo, muitos deles transformaram essa produção caseira em um negócio. Um grande negócio, diga-se. Assim, o Brasil aprendeu a tomar os primeiros tintos. Eram tempos em que ninguém cheirava e girava as taças. Os enochatos não tinham ainda vindo ao mundo e um garrafão cheio era entornado sem preconceitos em almoços, jantares e celebrações.

Rodas de fogueira com o garrafão passando de mão em mão ao som de Raul Seixas. A degustação feita sem frescuras e sem a necessidade de taças de cristais (valia até copo de requeijão reciclado). As festas de aniversário com o imponente vasilhame ostentando um lugar de honra à mesa, ao lado de guaranás, Fantas laranja e brigadeiros. Sim, havia ressacas memoráveis, mas os gigantes da resistência logo estavam prontos para outra rodada.

Qualquer bom vinho nacional do presente precisa pagar um tributo a esse passado. Vale homenagear os que ainda resistem — e resistem por que ainda há um público consumidor nada desprezível. O famoso Sangue de Boi, da Aurora, é vendido por quase 70 reais. O vasilhame passou por um retrofit (uma pena, pois o acabamento em palha ao redor da garrafa era um clássico do design etílico). Tem também uma versão gaseificada, que até já ganhou prêmio, e outra em 1 litro, mas o conteúdo é o mesmo de antigamente, com aquele sabor do pioneirismo italiano.

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Não tem ali Cabernet Sauvignon, Merlot, Malbec, Cabernet Franc… Só as legítimas uvas americanas de sempre. Na publicidade da década de 60, já acusando a forte concorrência, o Sangue de Boi tentava se diferenciar: “por fora, todos os garrafões são iguais, mas o que vale é o conteúdo”.

A fatia de mercado formada por consumidores populares ainda sustenta o negócio, mas não se sabe até quando. Há muito preconceito, há a natural evolução do paladar. Para quem nunca experimentou, vale um brinde e 1 minuto de silêncio em homenagem à tradição que pode estar com os dias contados (em copo de requeijão, se possível, nunca é demais lembrar).

Quem deseja rememorar o passado ao sabor de um gole, tente outra vez, como diz a famosa canção de Raul Seixas.

 

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