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Um conto de pós-Natal: lembrando a ascensão e queda de Savonarola

Há mais de 500 anos, os olhos frios encimados pelo crânio calvo de Girolamo Savonarola nos contemplam e continuam a provocar um arrepio metafórico. O poder absoluto que ele conseguiu no seu ímpeto reformista tem poucos paralelos na história da humanidade. Legou-nos uma poderosa parábola sobre os exageros que a concentração de poder numa única pessoa, movida por motivações maximalistas, tende a provocar.

O que queria o frade dominicano, com seus legítimos questionamentos sobre a corrupção na Igreja e o modo de vida algo libertino dos 50 mil pequenos tiranos que moravam na Florença do século XV, sob o governo igualmente dado à lassidão de costumes dos Médicis? Os historiadores concordam que ele não queria o poder por si mesmo, não ambicionava riquezas materiais nem contratos de cair o queixo. Queria transformar Florença na Nova Jerusalém e preparar a cristandade para a iminência do apocalipse. Nada modesto, portanto.

Nesse projeto, criou o que considerava uma república perfeita, um modelo que seria rejeitado por outro florentino famoso, Nicolau Maquiavel (Savonarola na verdade era de Ferrara, mas fez a carreira em Florença), ao qual repugnava a ideia do que é chamado de “governo largo” em italiano, com uma base popular mais ampla, obviamente nas condições da época, para expurgar a pecaminosa cidade de seus males e iniciar uma reforma em toda a Igreja e na Itália então pulverizada em diferentes ducados e reinos.

Para isso, deixou um legado que se tornou parte da história compartilhada em qualquer lugar do mundo: a fogueira das vaidades. Uma fogueira literal, na qual foram incinerados os elementos que faziam de Florença uma cidade das artes da vida e da vida das artes: baralhos, dados, harpas, alaúdes, quadros e esculturas com temas profanos, livros não religiosos, espelhos, cosméticos, perucas, roupas luxuosas, tudo o que afastava os homens – e principalmente as mulheres – da dedicação a Deus, como o protestantismo viria a proclamar algumas décadas depois e as vertentes fundamentalistas do Islã continuam a praticar.

PARTIDO DOS FURIOSOS

Muitos florentinos cederam, mas evidentemente houve enormes resistências. O partido contra Savonarola era o dos chamados Arrabbiati, os furiosos ou enraivecidos, homens importantes que repudiavam o frei puritano. Os Brancos apoiaram Savonarola no começo, por causa das reformas mais abertas à participação popular, mas depois se arrependeram. Os Bigi, ou cinzas, eram partidários dos Médicis.

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Todos, de alguma forma, pressionavam o papa Alexandre VI, nascido Rodrigo Borja, ocupado com questões como a divisão das terras prestes a serem descobertas no Novo Mundo, sua vida notavelmente devassa e alianças políticas nas quais seu filho, César Borja, era um elemento fundamental, chegando a ser cardeal conquanto não religioso. César, em tudo o oposto de Savonarola, inspirou Maquiavel a escrever O Principe e morreu aos 32 anos.

O papa Borja tentou várias vezes atrair Savonarola para Roma, inclusive prometendo-lhe a púrpura cardinalícia. “Um chapéu vermelho? Quero um chapéu de sangue”, respondeu o frade cada vez mais radicalizado, a ponto de proclamar Florença uma teocracia com Cristo como rei. Dizia que havia tido essa visão numa viagem mística ao céu na qual se encontrou com a Virgem Maria.

As visões e profecias foram ficando cada vez mais extremas, com promessas de que Florença lideraria o mundo. Obviamente, não poderia dar certo. O papa excomungou Savanarola em 12 de maio de 1497, uma espécie de superlei Magnitsky. Savonarola se recolheu a uma vida mais meditativa, mas Florença continuava pegando fogo. Literalmente: foi exigida a Savonarola a prova de fogo, um método que não era usado há quatro séculos. Um frade amigo se ofereceu para tomar seu lugar e provar sua inocência andando sobre brasas, mas na hora caiu uma chuva forte, o populacho se revoltou, Savonarola e comparsas acabaram presos. Sob tortura, confessou que havia inventado as visões e profecias, voltou atrás, confessou de novo.

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‘EU SOU A TEMPESTADE’

Savonarola e outros dois dominicanos acabaram enforcados, com fogueiras sob seus pés, num local onde hoje há uma placa, na Piazza della Signoria e uma réplica do Davi de Michelangelo, o homem ideal em tudo oposto à concepção do intolerante frade. As cinzas dos corpos incinerados foram jogadas no Arno para impedir peregrinações de seguidores. Os Médicis retomaram o poder não só em Florença, como em Roma, elegendo o papa Clemente VII.

Como é próprio da História, o papel de Savonarola foi muitas vezes reexaminado, Martinho Lutero o declarou um precursor da Reforma protestante e uma facção do movimento pela unificação da Itália no século XIX o tomou como inspiração.

“Eu sou a tempestade de granizo que quebrará as cabeças dos que não se abrigam”, foi uma das muitas frases bombásticas que deixou.

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Ludwig Pastor, o historiador alemão e católico convertido que escreveu uma obra monumental sobre os papas, analisou: “O terrorismo exercido por Savonarola e seus partidários se tornava a cada dia mais e mais insuportável. O profeta declarava que ninguém poderia ser um bom cristão se não acreditasse nele”.

Os olhos frios de Savonarola continuam a ter um poder hipnótico, da mesma forma que a parábola dos poderosos que acabam engolidos pelo excesso de poder, os revolucionários devorados por suas próprias revoluções e os profetas que se acreditam verdadeiros, mas não conseguem enxergar a própria queda.

O dia seguinte ao Natal é um bom momento para refletir sobre tantos paralelos históricos.

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