Entre as autoridades que lidam com a questão da segurança pública, há uma constatação repetida com uma frequência incômoda nos últimos tempos: a de que o crime está sempre um passo à frente, movido pela necessidade de produzir novos meios de burlar a repressão. Mais um exemplo desse dinamismo do mundo do crime veio à tona há dois meses, quando a Polícia Judiciária de Portugal interceptou um pequeno submersível nas proximidades das ilhas dos Açores. Na embarcação, que havia saído do norte do Brasil, encontraram três brasileiros, um colombiano, um espanhol e 6,5 toneladas de cocaína. A partir da Península Ibérica, essa carga seria distribuída por vários países da Europa, de acordo com a polícia, que classificou a ação de o maior confisco marítimo de drogas no Velho Continente.
A apreensão foi fruto de uma conexão investigativa entre Europa e Brasil, que já produz outros resultados. No dia 31 de maio, homens da Marinha, Força Área Brasileira (FAB) e Polícia Federal encontraram um submarino clandestino na cidade de Chaves, no arquipélago de Marajó, no Pará. Ninguém foi preso. “É uma embarcação rudimentar, com poucos recursos, basicamente um equipamento de propulsão”, diz o capitão de Guerra e Mar da Marinha Guilherme Barros Moreira. A despeito disso, parecia estar preparada para cruzar o Oceano Atlântico. Com 18 metros de comprimento e 25 toneladas de peso, o barco não tinha carregamento de drogas, mas era bastante semelhante ao interceptado em águas portuguesas. “Pelas características, tudo indica que seria usado no transporte de cocaína do Brasil para a Europa ou para a costa norte da África”, diz o delegado da PF Fernando Casarin.
Em fevereiro de 2024, pescadores de São Caetano de Odivelas, também no Pará, já haviam encontrado uma embarcação abandonada com as mesmas características. Um traço em comum entre esses novos veículos do tráfico é a precariedade. No caso da embarcação apreendida nas redondezas de Açores, fotos e vídeos divulgados por agentes lusitanos mostram pouco espaço para pessoas e itens essenciais, como colchões. Segundo a Marinha, os dados disponíveis não permitem estabelecer, com precisão, informações sobre autonomia, capacidade de armazenamento de carga e quantidade de tripulantes desse tipo de barco, chamado de “semissubmersível” por especialistas.

Após as apreensões recentes, investigadores brasileiros tentam identificar qual é o grupo criminoso que passou a investir nessa estratégia. Uma certeza é que, apesar do acabamento espartano, a construção desses veículos exige algum conhecimento de profissionais da área. A suspeita é de atuação do Primeiro Comando da Capital (PCC), em parceria com grupos da Europa, como a italiana ‘Ndrangheta, máfia da Calábria especializada em distribuir droga pelo continente europeu e que tem uma parceria afinada com a facção brasileira. A Câmara dos Deputados, por meio da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, pediu informações ao governo português, que batizou de “Nautilus” a investigação sobre esses veículos, nome do submarino comandado pelo Capitão Nemo no clássico romance Vinte Mil Léguas Submarinas, do francês Júlio Verne.
Os submersíveis do tráfico não chegam a tanto. Embora haja ainda poucas informações, é certo que navegam em águas logo abaixo da superfície, o que os torna difíceis de ser captados por radares, assim como pela vigilância ostensiva (a coloração azulada dificulta a detecção visual). Também são úteis pela facilidade de atracar em qualquer lugar, ainda mais em um momento em que os principais portos da Europa são cada vez mais vigiados.
O uso de submarinos pelas organizações criminosas brasileiras é uma atividade recente — a apreensão de Marajó foi a primeira feita pela PF —, mas ela tem onde se inspirar. A prática é considerada comum em países como a Colômbia, especialmente no Oceano Pacífico. Um dos adeptos era o célebre traficante colombiano Pablo Escobar, que chegou a se valer desse modelo para levar drogas aos Estados Unidos. Cartéis mexicanos também usam o meio de transporte — no segundo semestre de 2024, a Guarda Costeira americana interceptou uma embarcação do tipo carregada com 2 toneladas de cocaína, em carga avaliada em 50 milhões de dólares. Um dos objetivos do pedido da Câmara ao governo português é apurar o “grau de cooperação internacional do país no enfrentamento ao crime organizado” e “eventuais lacunas que possam comprometer a efetividade das medidas de combate ao tráfico transnacional”. O dinamismo exibido pelas falanges criminosas no Brasil, de fato, historicamente contrasta com uma certa inércia do poder público. A descoberta do primeiro caso de tráfico submarino transatlântico não deixa de ser mais um alerta nesse sentido.
Publicado em VEJA de 13 de junho de 2025, edição nº 2948