Nos últimos anos, o universo político acompanha a guinada da direita a reboque do retorno de Donald Trump à Casa Branca e o contínuo apoio a Jair Bolsonaro, agora condenado por tentativa de golpe de Estado. Alguns destes acontecimentos são analisados por João Décio Passos, 62 anos, e Wagner Lopes Sanchez, 60, no livro A Salvação da Pátria Amada: Religião e Extrema Direita no Brasil (ed. Paulus), obra vencedora do Prêmio Jabuti de Teologia. Em conversa com a coluna GENTE, Passos afirma que o extremismo religioso, ligado à radicalização da direita, tem como principal pilar o autoritarismo e a imagem de um líder que está acima da nação. Segundo ele, Bolsonaro e seus fiéis seguidores criam “discursos perigosos para a democracia”, semelhantes às falas do ditador italiano Benito Mussolini (1883 – 1945).
No livro, o senhor percorre a trajetória histórica da extrema-direita com a religião. O que analisa sobre esses laços? Ao longo da história, a religião foi adotada como fundamento e justificativa dos governos de extrema-direita. Basta olhar para a Hungria e para o governo Trump nos Estados Unidos. Nós temos uma evidência histórica em que os governos de viés autoritário apelam para uma fundamentação religiosa. Podemos citar o caso mais emblemático que é a extrema-direita nazista. Parece que o historiador esqueceu que o nazismo é um sistema religioso. A extrema-direita, se quiser ampliar mais o conceito, regimes autoritários, sempre tiveram uma base dogmática religiosa implícita ou explícita.
Que comparação podemos fazer? A entrada da imagem de São Miguel Arcanjo no Congresso Nacional em agosto foi recebida com total naturalidade, um fato desses seria impensado há 20 anos. Revela uma postura de uma ligação direta entre determinada tendência política, que aqui chamo de extrema-direita. No governo Bolsonaro, isso se tornou mais caricato.
Por quê? Basta observar as narrativas de que ele é o escolhido por Deus, que só sairá do governo quando Deus quisesse, a formação do governo de pastores e de clérigos e uma base religiosa fortíssima, que o elegeu, que o sustentou, e que ainda permanece nas bases do bolsonarismo.
Qual a importância dessa base religiosa para seu discurso? A base religiosa entende que ele foi eleito por Deus para expurgar os inimigos da nação brasileira, daí a metáfora do título de Salvação do Brasil. Mas olhando para a longa temporalidade histórica, não tem nenhuma novidade, há raízes antigas nos regimes monárquicos medievais, mas também ainda nos regimes monárquicos modernos, de natureza teocrática.
É possível observar o mesmo em Trump? O governo de Trump tem um fundamento protestante e católico e as pessoas esquecem disso. Trump foi eleito não só por protestantes fundamentalistas do Partido Republicano, mas por católicos tradicionalistas.
Líderes que justificam suas ações por meio da fé são autoritários? Todo governo prepotente se assenta sobre a ideia de uma onipotência. Ele precisa de um onipotente, de um todo poderoso que lhe concede todas as prerrogativas para ele exercer o poder. Há uma narrativa e parece haver uma convicção dos governos autocráticos e autoritários de que alguém foi escolhido por Deus para exercer o seu mandato.
Como isso é visto nos governos? Os governos populistas têm uma estrutura organizada na ideia desse mito, uma divindade, uma lei suprema. Imaginemos, no caso do nazismo, a ideia de que há um germânico original que foi contaminado. Bolsonaro falava de uma era original, a ditadura. Há um mito, onde tudo se sustenta e abaixo há a nação.
Em uma parte do livro, se fala da fabricação dos inimigos… Chamo de os indesejados da pátria amada. A pátria, a nação sempre terá aquele que a ameaça e esse deve ser evitado e eliminado. Bolsonaro repete, os homens de bem ficarão e de mau terão que ir embora. O Trump, a Marie Le Pen na França, a extrema-direita de Portugal… todos colocam esse discurso nos imigrantes. A nação está ameaçada, então tem um mito, a nação logo abaixo do líder, que vai garantir a salvação da nação
E como isso afeta a democracia? Afirma que não precisamos das instituições construídas, dos três poderes, da constituição…Vai-se dispensando a Constituição, relativizando os poderes instituídos, culpabilizando a Constituição, o sistema jurídico e o parlamento. O Trump tem trabalhado assim. Bolsonaro ameaçou o Supremo desde o primeiro dia que chegou.
Bolsonarismo pode ser lido como uma religião? É possível sim. Como o nazismo pode ser lido como uma religião, como o franquismo pode ser lido como uma religião. É uma religião política, ela está sendo situada num caos cultural, numa história. O governo Bolsonaro é uma neo-teocracia muito curiosa, que colocou um pé no catolicismo e um pé no evangelho.
A extrema-direita é perigosa para a democracia? A extrema-direita é antidemocrática. Ela vai criando uma narrativa de que a democracia acabou, que ela só trouxe decadência, que coloca em risco a pureza da pátria, da família, da religião. A extrema-direita fala de Deus, pátria e família como base. Não foi o Bolsonaro que inventou isso, foi Mussolini. Esse discurso foi importado.
Política e religião podem se misturar? Tem que ter regra para essa mistura. Nós precisamos do Estado laico que garanta o direito de existência de todos, de crentes e ateus, homens e mulheres, pretos e brancos, de gay, hétero e assim por diante.
E qual é o papel da religião? No Estado democrático, a religião tem um papel de contribuir com a democracia, de ajudar a fornecer as bases da convivência pacífica de todos, a religião pode ser uma fonte que ajude a alimentar a ideia de que todos são iguais e de direitos iguais.
O senhor é contra a bancada evangélica? Não. Não significa que concorde com as bandeiras deles. As bandeiras deles são horrorosas, discordo de tudo. No entanto, no Estado democrático, no Parlamento, há o direito inerente de organização de todos, inclusive de segmentos religiosos. Agora, sou contra ou autoritarismo ou fundamentalismo
O que é extrema-direita? A extrema-direita podemos chamar de populismo reacionário. É o segmento autoritário, populista, que se liga diretamente ao povo, dispensa as estruturas do Estado Democrático. No nosso caso, diz que a Bíblia é suprema,
Como a religião e a extrema-direita impactam os direitos humanos e de minorias sociais? Porque o populismo reacionário é contra as igualdades, contra as garantias de direitos iguais de todos. ‘Foi pena que aqui no Brasil não exterminou todos os indígenas’, o Bolsonaro falou isso. O golpe continua aqui no Brasil. O Eduardo Bolsonaro está na parte dois do golpe. A extrema-direita é golpista porque ela não suporta leis que garantam os direitos iguais