Entre estudar Física na faculdade ou ser um autor de ficção científica, o americano Ted Chiang optou por algo no meio do caminho: formado em Ciência da Computação, ele assumiu a ofício de transformar textos técnicos na Microsoft para algo perto do legível aos meros mortais. Em paralelo ao ganha-pão oficial, continuou publicando contos. Criativo e dono de uma narrativa hipnotizante, Chiang, porém, alimenta pouco os fãs: ele conta com duas coletâneas enxutas de contos, História da Sua Vida e Outros Contos (2002) e Expiração (2019). A fama restrita ao reduto de leitores de ficção científica foi ampliada exponencialmente em 2016, quando chegou aos cinemas o excelente filme adaptado de um de seus escritos A Chegada (2016), do diretor Denis Villeneuve, protagonizado por Amy Adams e nomeado em oito categorias do Oscar. Pela ampla experiência no mundo da computação, Chiang ainda se tornou um nome relevante na análise dos potenciais da inteligência artificial e no seu uso na produção criativa, especialmente na literatura. O assunto será tratado por ele durante um evento em São Paulo no próximo dia 5 de agosto promovido pela agência de comunicação Pina. Antes de desembarcar no Brasil, o autor falou a VEJA sobre escrita, mudanças no mercado criativo e como a IA ainda não lhe parece uma preocupação.
O senhor é um escritor premiado e publicou apenas dois livros de contos até agora. Por que esse ritmo? Eu gostaria de ser mais prolífico. Não existe leitor que deseje que eu escreva mais do que eu mesmo. Mas tive que aceitar que não sou um escritor rápido. Aprendi a lidar com isso, e acho que meus leitores também terão que aprender. Eu gostaria de ser mais rápido, de ter muitas ideias e estar sempre publicando histórias, mas não funciona assim pra mim. Meu fator limitante é a quantidade de ideias que eu realmente quero escrever, não necessariamente o tempo disponível.
O filme A Chegada foi um sucesso e o tornou conhecido no mundo. Qual foi a fonte da inspiração para escrever essa história e o que mais o surpreendeu no filme? A inspiração veio da ideia de escrever sobre um personagem que conhecia o futuro, mas não podia mudá-lo. Sabia que algo doloroso ia acontecer, mas não havia como evitar. Esse foi o ponto de partida. Quanto ao filme, eu li várias versões do roteiro durante o desenvolvimento. O roteirista me contou suas ideias desde o início. Sabia que haveria mudanças, mas o que me surpreendeu foi o quanto o filme ficou diferente até mesmo do roteiro final.

Nos últimos anos, você se tornou uma voz respeitada em relação à inteligência artificial. O que mais o fascina nesse campo? Sou um ávido leitor de ficção científica e me interesso por filosofia, então a inteligência artificial é um campo natural de interesse. A questão ampla sobre se é possível construir uma máquina pensante — seja lá o que isso signifique — intriga as pessoas há décadas. Sempre estive atento à enorme lacuna entre o que a ficção científica imaginou sobre a IA e o que realmente temos. Nos últimos cinco anos, pode parecer que chegamos perto daquele ideal sonhado por décadas. Quando o GPT-2 foi lançado, fiquei pasmo. Parecia um grande avanço. Mas quanto mais aprendi sobre o GPT-2, GPT-3 e os modelos de linguagem, mais entendi que eles não eram o grande avanço que pensei inicialmente. Eles são impressionantes, sem dúvida. Mas não os considero “máquinas pensantes”, apesar do que muitos sugerem. Sinto que preciso me opor a essa narrativa.
Por que pensa assim? Porque passei a entender melhor como esses modelos funcionam. E percebi que suas limitações são significativas e não parecem fáceis de corrigir. No fundo, eles se baseiam em algo chamado “next token prediction” — uma versão muito sofisticada do que seu celular faz quando sugere palavras enquanto você digita. Mas isso não é inteligência. A previsão do que vem a seguir não equivale ao raciocínio, pelo menos não como entendemos tradicionalmente. Então não acredito que tornar esse tipo de sistema ainda mais preciso vá nos levar à criação de uma máquina que realmente raciocine.
No campo de produção criativa, qual área vê mais inclinada a abraçar a IA como ferramenta constante? Acho que os cineastas vão se beneficiar mais, porque fazer filmes exige muito tempo e dinheiro. Mas não vejo isso nas artes plásticas ou na escrita. Escrever não exige muita tecnologia — um escritor ainda consegue fazer isso com papel e lápis. É importante sempre lembrar: inteligência artificial não é gente.
O que acha dos modelos de compensação financeira que começaram a ser apresentados agora para escritores que liberam suas obras para o treinamento de IA? Faço uma analogia com desmanches de carro. Ladrões roubam carros, desmontam e vendem as peças. Rastrear essas peças é muito difícil. Acho que os modelos de linguagem funcionam de forma parecida: quebram seu trabalho em pedaços e o redistribuem de modo que seja difícil saber de onde veio. Se você fosse uma concessionária de carros, e seus carros fossem roubados o tempo todo, e ninguém fizesse nada, talvez valha a pena aceitar o acordo dos ladrões para ter uma parte do lucro. Mas isso não significa que o preço seja justo. O desmanche só funciona porque paga pouco — não conseguiria te oferecer um valor realmente justo. Você pode aceitar o acordo, mas isso é diferente de dizer que é um acordo justo.
Já lhe ofereceram algo desse tipo para treinar IA? Não. Nunca me abordaram nesse sentido.
Estão estão só roubando seu trabalho. Imagino que sim. Suponho que meu trabalho esteja sendo explorado, como o de todo mundo.
Suas histórias são principalmente no campo da ficção científica, mas algumas têm referências religiosas. Como o conto O Inferno É a Ausência de Deus. O que lhe atrai nesse tema? Bem, acho que a ficção científica serve, entre outras coisas, para explorar diferentes formas de entender o universo. Eu não sou religioso, mas me interesso pela religião como uma forma de compreender o mundo. Penso muito em como a religião pode facilitar certas coisas — e como pode dificultar outras. Muita gente encontra conforto na religião, mas também acho que ela pode tornar algumas coisas mais difíceis. Por exemplo, se você é ateu e seu bebê nasce com uma doença grave, é horrível, mas você pode entender isso como fruto do acaso, das mutações genéticas. Mas se você acredita em um Deus benevolente, isso é mais difícil: como conciliar a existência desse Deus com o sofrimento do seu bebê? Nem todo mundo sente isso da mesma forma, claro. Mas me interessa tentar entender a visão de mundo de quem vê o universo de forma tão diferente da minha.
Sendo filho de imigrantes chineses nos Estados Unidos, como está diante do aumento da animosidade do governo americano com estrangeiros? Falando sobre mim, acredito que estou relativamente seguro, por ter nascido nos Estados Unidos e não estar no grupo mais visado pelo governo atual. Mas não tão seguro quanto uma pessoa branca nascida nos Estados Unidos. A situação é muito preocupante. Não sabemos quais os limites do que esse governo pode tentar fazer. Ninguém deveria ficar complacente.
Como vê o papel da arte em tempos como este? Acho que ela ajuda a aumentar a empatia, a mostrar que pessoas diferentes, no fundo, são muito parecidas. O problema é que, infelizmente, os fascistas não leem muita ficção. Fascistas costumam ter pouca apreciação pela arte. E são justamente as pessoas que mais gostaríamos que lessem. Mas claro que a arte é fundamental para evitar que as pessoas caiam em certas formas de pensamento extremista. Por isso é crucial que a arte exista.