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Tarifaço abre espaço para ofensiva das big techs contra regulação digital

Discretamente, sem declarações públicas, entrevistas ou fanfarra, o setor da economia americana com chance real de tirar vantagem imediata do tarifaço contra o Brasil avança rapidamente na defesa de seus interesses. No fim de julho, depois do anúncio da sobretaxa de 50% sobre produtos brasileiros, representantes das big techs, as grandes empresas de tecnologia digital, levaram sua lista de demandas a Brasília, em uma reunião com o vice-presidente Geraldo Alckmin que contou com a participação remota de um assessor de comércio do governo Donald Trump. Foi um momento de triunfo silencioso. As big techs, em sua maioria companhias originárias dos Estados Unidos, como Meta (dona de Facebook, Instagram e WhatsApp), Alphabet/Google, Amazon e Apple, estão em campanha no Brasil contra decisões judiciais e planos de regulação que afetam seus interesses comerciais. Em 2024, uniram-se nos bastidores a deputados de oposição para enterrar o Projeto de Lei das Fake News, que exigiria delas obrigações custosas e uma atuação mais transparente. Mas o governo federal passou a estudar outros meios de definir regras para sua atuação, incluindo uma lei que garanta concorrência justa no mercado digital e outra, sobre conteúdos digitais, que não trata de desinformação, mas prevê mecanismos para evitar crimes on-line, como os de pedofilia. Em agosto, o assunto ganhou tração depois que o youtuber Felca revelou que plataformas como o Instagram incentivam o engajamento de adultos com vídeos de crianças erotizadas. Como se não bastasse, o limbo regulatório deu brecha para que, neste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) formasse maioria para responsabilizar as plataformas pelos conteúdos de usuários. Como isso vai ocorrer na prática, ainda não se sabe, e depende de detalhamento por parte da Corte. Não por acaso, representantes das big techs aproveitaram a comoção em torno do tarifaço para se reunir também com ministros do STF. Elas vislumbram uma janela de oportunidade para influenciar no desenho final da decisão judicial. Cada vez mais, portanto, esses gigantes agem como os donos do mundo.

Data center: as plataformas reivindicam incentivos para ter centros de dados no Brasil
Data center: as plataformas reivindicam incentivos para ter centros de dados no BrasilErik Isakson/Getty Images

As empresas de tecnologia digital atuam com um lobby em duas frentes, uma nos Estados Unidos, cooptando a política externa para proteger seus interesses, e a outra no Brasil, para colher, nos bastidores, os frutos da pressão exercida pelo governo americano. Misturadas a questões políticas inegociáveis, como o apoio de Trump ao ex-presidente Jair Bolsonaro, as preocupações das big techs apareceram de forma explícita nas justificativas do governo americano para impor uma tarifa tão alta ao Brasil. Em um relatório determinando a abertura de uma investigação sobre práticas comerciais supostamente abusivas por parte do Brasil, são elencadas, entre outras desculpas, decisões do STF contra redes sociais e políticas que afetam empresas americanas de comércio digital, entretenimento e pagamento eletrônico. Para surpresa dos brasileiros, o amado Pix assumiu pose de vilão — aos olhos de Trump, das bandeiras de cartões de crédito e das plataformas digitais. Em 18 de agosto, a diplomacia brasileira apresentou sua defesa aos pontos reunidos na investigação do governo americano. Entre outros argumentos, negou que as empresas americanas sejam discriminadas no Brasil. Simplesmente, devem cumprir as mesmas regras a que todas, brasileiras ou de fora, são submetidas. Sobre o Pix, reforçou: “Não há proibição para plataformas digitais — como WhatsApp, Facebook ou Instagram — oferecerem seus próprios serviços de pagamento digital”.

Manifestante dá apoio a Elon Musk: embate com o STF
Manifestante dá apoio a Elon Musk: embate com o STFDado Galdieri/Bloomberg/Getty Images

A pressão sobre o Brasil tem características próprias, mas não é isolada. Ela faz parte de um movimento coordenado para barrar leis que afetam os interesses das big techs no mundo inteiro. Desde que Trump assumiu seu segundo mandato, já comprou brigas em nome do Vale do Silício com a União Europeia, a Indonésia e a Austrália, entre outros. As tarifas de importação extorsivas fazem parte da estratégia. O Canadá rescindiu um imposto sobre serviços digitais na véspera de sua implementação, em julho, em meio às negociações de tarifas com os Estados Unidos. Índia e Nova Zelândia já tinham feito o mesmo, sem conseguir nada em troca. A luta para não serem tributadas — travada também no Brasil — nem é a parte mais relevante da agenda internacional das big techs.

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O que os gigantes da era digital querem pode ser resumido em uma ideia: liberdade para desenvolver seus modelos de negócios sem restrições e sem prestar contas a ninguém. Ou seja, eles pretendem continuar armazenando e usando dados privados onde e como quiserem, ter controle absoluto sobre seus algoritmos e sistemas de moderação de conteúdo, e passar ao largo de regulamentações antimonopólio. Essas demandas não são novas — elas foram sistematizadas em 2016 em um documento chamado Digital 2 Dozen (Duas Dúzias Digitais, em português), que apresentou os interesses privados das big techs como se fossem regras básicas para o funcionamento da internet em nome do bem público. “Numa época em que Google e Facebook eram vistas como aquelas empresas com funcionários andando de patins e jogando pingue-pongue no expediente, elas conseguiram moldar o mundo digital para obter lucros fabulosos sem escrutínio algum e dificultando a vida para a concorrência”, afirma a cientista política Wendy Li, da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.

Afago: Tim Cook, da Apple, entrega presente a Trump
Afago: Tim Cook, da Apple, entrega presente a TrumpWin McNamee/Getty Images

Nos últimos quinze anos, o crescimento das empresas de tecnologia americanas veio acompanhado de uma intensificação notável no lobby — legalizado — exercido em seu nome em Washington. O uso da política externa para promover interesses de grandes empresas em outros países não é uma novidade. O que torna os pleitos internacionais das big techs diferentes daqueles perseguidos por outros setores da economia é a natureza do seu modelo de negócio. Diferentemente de empresas tradicionais que tentam proteger mercados específicos, os gigantes tecnológicos controlam múltiplas atividades interconectadas. A Amazon é ao mesmo tempo e-commerce, editora, serviço de nuvem, streaming e produtora de conteúdo. O Google domina buscas, publicidade e também oferece infraestrutura digital. A integração permite a essas empresas usar o controle de um mercado para crescer em outros, criando um ecossistema para o qual praticamente não há alternativas. “É quase impossível um negócio operar no Ocidente sem usar os serviços de Microsoft ou Google, por exemplo”, diz Karina Montoya, do Open Markets Institute, um instituto dedicado a combater monopólios com sede em Washington.

Centro de distribuição da Amazon no Brasil: atividades interligadas
Centro de distribuição da Amazon no Brasil: atividades interligadas./Divulgação
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Mas não é só a capacidade de ampliar monopólios que preocupa. O fato de essas empresas controlarem os fluxos de informação globais lhes dá um poder que vai da economia à política. Elon Musk, por exemplo, se gaba de ter se valido do X para ajudar na eleição de Trump, e é bem possível que seja verdade. As big techs podem usar suas plataformas para moldar a opinião pública sobre políticas que afetam a elas mesmas. Como usam os dados dos usuários livremente, sem revelar os métodos, isso torna impossível fiscalizar se manipulam os algoritmos para alcançar seus objetivos políticos ou não. É um poder sem precedentes: a capacidade de definir não apenas o que é comercializado, mas como a sociedade entende e debate essas questões.

Se há dez anos a influência dessas empresas no governo era exercida longe dos holofotes, hoje a turma do Vale do Silício está em todas as esferas da administração Trump. Até brigar publicamente com o presidente, Musk era membro do governo e tinha como uma de suas missões declaradas desregular o setor de tecnologia. Mais discreto é o vice-presidente americano JD Vance, que antes de entrar para a política era investidor no Vale do Silício. Foi Peter Thiel, ex-sócio de Musk na provedora de serviços de pagamento PayPal, quem o apresentou a Trump quando o candidato republicano procurava um companheiro de chapa.

Loja no Panamá atrai brasileiros com pagamento por Pix: inovação incômoda
Loja no Panamá atrai brasileiros com pagamento por Pix: inovação incômodaMarcelo Brandão/Agência Brasil
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Uma cena emblemática dessa relação umbilical foi a foto que mostrou os novos donos do mundo na primeira fila da posse de Trump, em janeiro, à frente até mesmo do futuro gabinete de secretários. Estavam lá Mark Zuckerberg (dono da Meta), Jeff Bezos (da Amazon), Sundar Pichai (CEO do Alphabet/Google) e Musk (X e Tesla). Tim Cook, presidente da Apple, não compareceu, mas visitou a Casa Branca em agosto e presenteou Trump com uma escultura de vidro com uma base de ouro 24 quilates. Saiu da Casa Branca com a promessa de que os produtos da Apple seriam isentos de tarifas de importação da Índia e China. “Os Estados Unidos têm o relógio correndo contra si para a disputa da hegemonia tecnológica global, que diz respeito principalmente à inteligência artificial”, diz Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. “Nessa batalha, os próximos cinco anos vão ser decisivos e o alinhamento entre empresas privadas e o governo americano, também.”

A União Europeia antecipou-se à dobradinha da Casa Branca com as big techs e já implementou uma série de leis regulamentando o uso de dados, o mercado digital e a transparência dos conteúdos que circulam on-line. Neste ano, os europeus também foram os primeiros a criar regras para o desenvolvimento e o uso de IA. “O objetivo é simples: queremos que essas empresas mudem seu modelo de negócio para um que seja mais transparente, mais competitivo e que respeite os direitos fundamentais dos europeus”, diz Alexandre de Streel, pesquisador do Centro de Regulação da Europa, um núcleo de estudos com sede em Bruxelas, na Bélgica. Não deu outra: seis empresas americanas assinaram uma carta pedindo à Casa Branca que tome medidas contra as “políticas digitais discriminatórias da UE”.

arte bigtechs

Nesse, como em outros episódios, as grandes empresas de tecnologia não operam sozinhas em sua campanha global contra regulamentações. Elas se apoiam em uma rede sofisticada de organizações de lobby. Grupos como a Associação da Indústria da Computação e Comunicações (CCIA, na sigla em inglês), a Internet Association, a Business Software Alliance e o Information Technology Industry Coun­cil funcionam como um anteparo para as posições das big techs. A CCIA, por exemplo, publicou no ano passado um extenso relatório sobre o que chama de “barreiras tarifárias às exportações americanas”, com ênfase na regulação e na taxação de serviços digitais em diversos países. As cartas que a Casa Branca tem enviado para impor tarifas de importação, inclusive a que foi endereçada ao presidente brasileiro, repetem trechos inteiros do documento, e a entidade é rápida em celebrar o governo americano em suas negociações. No fim de julho, por exemplo, minutos depois de Trump anunciar que havia avançado em um acordo tarifário com a Indonésia, pelo qual o país asiático se comprometia a derrubar “barreiras” ao comércio digital, a CCIA publicou uma nota parabenizando as duas nações. Foi o mesmo tempo que a entidade demorou para aplaudir e cobrar celeridade nas investigações comerciais contra o Brasil. “A Europa e outros países têm tentado emplacar um conceito de ‘soberania digital’ que não faz sentido, porque se trata de uma indústria interconectada globalmente por princípio”, justificou Boniface de Champris, porta-voz da CCIA em Bruxelas, em entrevista a VEJA NEGÓCIOS. Entre os membros da CCIA estão Amazon, Apple, Google, Meta, Intel, Uber e Shopify.

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Reunião de Alckmin com empresas de tecnologia: lobby em duas frentes
Reunião de Alckmin com empresas de tecnologia: lobby em duas frentesCadu Gomes/VPR/.

Para as big techs, o Brasil é uma peça do dominó que não pode cair. O tempo médio de uso de redes sociais dos brasileiros é o segundo maior do mundo. O país é o terceiro maior mercado para o Instagram e o segundo para o WhatsApp. É, também, aquele que avança mais rápido no uso da IA do Google. O que acontecer aqui em termos regulatórios pode incentivar outras nações emergentes a fazer o mesmo.

Alexandre de Moraes, do STF: decisões bateram de frente com as big techs
Alexandre de Moraes, do STF: decisões bateram de frente com as big techsRosinei Coutinho/STF

A possibilidade de o Brasil aprovar uma legislação específica com regras para a IA é uma das principais preocupações. Nesse ponto, as big techs têm certa razão. “É uma tecnologia muito nova e tentar restringi-la vai deixar o Brasil de fora dessa fase de inovação. Seria como regular o tamanho do parafuso em plena Revolução Industrial”, diz Ricardo Campos, especialista em direito digital da Universidade Goethe de Frankfurt, na Alemanha. Em vez de regular por regular, o Brasil precisa pensar de forma estratégica. Uma maneira de fazer isso é incentivando a instalação, em território nacional, de data centers — locais dedicados a armazenar e processar informações digitais, incluindo aquelas necessárias para a IA, e que demandam muita energia. Isso o Brasil pode fazer, beneficiando ao mesmo tempo o interesse nacional e o dos novos donos do mundo.

Publicado em VEJA, agosto de 2025, edição VEJA Negócios nº 17

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