A assinatura de um acordo de cooperação técnica para conter os danos causados pelos jogos de aposta online para a população e a economia realizada nesta quarta-feira, 3, entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Fazenda prevê a criação de um observatório para acompanhamento e oferta de suporte em saúde mental para as pessoas que lutam contra a dependência nas plataformas, caso das bets. No Brasil, segundo estimativa da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), 4 milhões de pessoas têm algum tipo de transtorno relacionado às apostas.
O Observatório Brasil Saúde e Apostas Eletrônicas, como foi batizado, vai receber e avaliar informações sobre acesso de pessoas que estão cadastradas em plataformas de apostas, seguindo a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), com o objetivo de mapear vulnerabilidades, como apostadores que estão jogando de forma compulsiva e em horários que podem comprometer suas atividades diárias. Esses dados serão utilizados para a criação de políticas públicas para conter o avanço da dependência.
O sistema vai funcionar ligado à plataforma de autoexclusão desenvolvida pela Fazenda que entrará em vigor na próxima quarta-feira, 10, e também foi anunciada no evento que reuniu as duas pastas. Essa ferramenta vai permitir que as pessoas se cadastrem por períodos de 1, 3, 6, 9 ou 12 meses sem permissão de jogar. É possível ainda estabelecer a proibição por tempo indeterminado. Seja qual for a opção escolhida, não há opção de voltar atrás. A autoexclusão ainda não contava com uma plataforma, mas os dados do ministério mostram que 950 000 pessoas já pediram a interrupção de acesso nas próprias redes de apostas virtuais.
“O tratamento de dados será feito pelo Ministério da Saúde para fazer avaliação geográfica e sociodemográfica para desenvolver políticas públicas mais pontuais. O observatório envolve a possibilidade de realizar busca ativa e, pela primeira vez na política de saúde mental, ter o estabelecimento de uma oferta de teleatendimento para quem realizar a autoexclusão, principalmente por transtorno do jogo”, explicou Marcelo Kimati, diretor do Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde.
Segundo ele, os investimentos da pasta com saúde mental aumentaram 70% na comparação entre 2025 e 2022, no entanto, há crescimento nos atendimentos por jogo patológico. E os dados não apontam tendência de queda. Em 2023, foram 2.262 atendimentos, número que saltou para 3.490 no ano passado. Entre janeiro e julho deste ano, foram 1.951. Em 2025, o número deve ficar entre 4 e 5 mil, de acordo com o ministro da Saúde Alexandre Padilha.
O teleatendimento vai entrar em vigor em fevereiro de 2026 e estão previstos entre 400 e 450 atendimentos mensais. Para ampliação da oferta, foi firmada uma parceria com o Hospital Sírio-Libanês por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS) e outros hospitais que integram a iniciativa devem ser convidados para colaborar.
“As pessoas que identificam problemas com jogos vão ter uma testagem online que tem mais 90% de especificidade e mais de 90% de sensibilidade e é uma escala validada no Brasil com quatro perguntas usadas em todos os serviços especializados”, disse Kimati. Profissionais de saúde serão treinados para fazer o atendimento da população por especialistas da Universidade de São Paulo (USP).
No próximo ano, o ministério vai investir R$ 12 milhões em pesquisas sobre a dependência em jogos no país que serão conduzidos pela USP e pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “A gente entende que existe uma necessidade de ampliar o conhecimento em saúde pública”, afirma o diretor.
‘Emergência de saúde pública’
Ex-ministro da Saúde e pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), José Gomes Temporão destacou as consequências deletérias da dependência em apostas virtuais, que está associada a episódios de depressão, consumo de álcool e drogas, problemas de relacionamento, afastamento do trabalho e, nos casos mais extremos, suicídio.
“Podemos dizer que essa questão se caracteriza como uma emergência em saúde pública. Estudos recentes apontam que são 38 bilhões de reais por ano de perdas econômicas e sociais envolvidas nesse gravíssimo problema”, afirmou.
Padilha concordou com a gravidade do quadro. “Essa compulsão é quase silenciosa e é muito difícil essas pessoas conseguirem interromper sozinhas. Elas não procuram o sistema de saúde ou por dificuldade de perceber (a dependência) ou por receio. A gente quer chegar mais próximo às pessoas que estão no entorno, porque é uma compulsão que não tem bafo, não tem barulho, mas está destruindo a vida das pessoas.”
Representante da Opas no Brasil, Cristian Morales apresentou dados alarmantes com base no balanço da Organização Mundial da Saúde (OMS) que aponta que 1,2% da população apresenta algum tipo de transtorno por jogos e apostas.
“Traduzindo para a América Latina, estamos falando de 8 milhões de pessoas, a metade no Brasil. A dependência pode causar danos à saúde, aumento da incidência de transtornos mentais, crimes para geração de renda e negligência infantil. São impactos sobre saúde mental, econômica e social da população.”
Em outubro do ano passado, a Comissão Lancet, ligada ao renomado periódico científico, publicou um editorial e uma série de artigos convocando governos e elaboradores de políticas públicas a buscar soluções diante do crescimento desenfreado das apostas online e dos danos à saúde mental e financeira da população.
Os pesquisadores afirmaram que as bets e demais jogos de azar virtuais são uma ameaça à saúde pública com potencial de atuar como fatores viciantes e prejudiciais, como o álcool e o tabaco. Um dos artigos estimou que as perdas líquidas globais dos usuários podem chegar a 700 bilhões de dólares até 2028.