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Série internacional mostra como ultraprocessados viraram negócio trilionário e risco à saúde pública

Publicada nesta terça-feira, 18, na The Lancet — uma das revistas científicas mais influentes do mundo — uma série especial de três artigos reúne um consenso entre 43 pesquisadores de diversos países: o avanço dos alimentos ultraprocessados deixou de ser apenas uma preocupação nutricional e passou a ser uma ameaça urgente à saúde pública. Mais do que isso, os autores defendem que não dá mais para tratar o problema como responsabilidade exclusiva das escolhas individuais, já que existe um sistema inteiro trabalhando para empurrar esses produtos para o centro do prato.

O grupo, que reúne cientistas do Brasil, Chile, Austrália e outros países, revisou mais de uma década de evidências e concluiu que os ultraprocessados estão substituindo alimentos in natura de forma acelerada. E cobrando um preço alto da saúde global. 

“Grandes corporações globais obtêm lucros extraordinários ao priorizar produtos ultraprocessados, apoiadas por estratégias de marketing e de lobby político que acabam bloqueando políticas públicas de alimentação adequada e saudável”, afirma o epidemiologista Carlos Monteiro, do Nupens (USP), responsável por cunhar o termo “ultraprocessados” e um dos pesquisadores brasileiros que assinam a série.

Consumo vs. doenças crônicas

O primeiro artigo funciona como um grande raio-X. Ultraprocessados são produtos industrializados feitos a partir de ingredientes baratos — como gorduras hidrogenadas, isolados proteicos ou xaropes de glicose e frutose — e de aditivos cosméticos, como corantes, adoçantes artificiais e emulsificantes. Exemplos mais comuns incluem biscoitos recheados, salgadinhos, refrigerantes, macarrão instantâneo, salsichas, nuggets, pizzas congeladas, sorvetes, e por aí vai.

Dados mostram o crescimento no consumo desses produtos em vários países. Nas últimas décadas, a participação dos ultraprocessados nas compras triplicou na Espanha (de 11% para 32%) e na China (de 4% para 10%). No México e no Brasil, mais que dobrou, saindo de cerca de 10% para 23%. Em países como Estados Unidos e Reino Unido, metade da alimentação diária já vem desses produtos – um patamar que se mantém estável, porém alto.

E esse aumento tem consequências. Os autores destacam que dietas ricas em ultraprocessados estão associadas ao consumo excessivo de calorias, pior qualidade nutricional (mais açúcar e gorduras ruins; menos fibras e proteínas) e maior exposição a aditivos químicos. Uma revisão conduzida especialmente para a série analisou 104 estudos de longo prazo e 92 deles encontraram aumento de risco para uma ou mais doenças crônicas. As análises apontam associações consistentes com 12 condições, entre elas obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, depressão e maior risco de morte precoce. 

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Os autores reconhecem que ainda existem pontos em aberto na ciência, como a falta de ensaios clínicos extensos e a necessidade de entender melhor os mecanismos biológicos envolvidos. Mas argumentam que essas lacunas não devem servir de desculpa para adiar ações. “Embora o debate científico seja bem-vindo, é importante distinguir discussões legítimas de tentativas de grupos com interesses econômicos de enfraquecer as evidências existentes”, diz a professora Mathilde Touvier, do Instituto Nacional Francês de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm).

E o que fazer agora?

O segundo artigo da série foca justamente no que pode e deve ser feito. Os pesquisadores propõem um pacote de políticas públicas para frear a produção, a publicidade e o consumo de ultraprocessados, responsabilizando diretamente as empresas que produzem esses produtos.

A ideia é complementar medidas já existentes, como a redução de sal, açúcar e gorduras, com políticas específicas para lidar com os ultraprocessados. Barry Popkin, professor da Universidade da Carolina do Norte (EUA), explica uma das propostas: incluir, nos rótulos frontais, informações sobre ingredientes típicos desse tipo de produto, como aromatizantes, corantes, adoçantes e outros aditivos. Isso ajudaria a evitar trocas de ingredientes igualmente prejudiciais e fortaleceria regulações mais eficientes.

A série também propõe restrições mais duras à publicidade — especialmente a voltada a crianças e a campanhas em redes sociais — além de impedir a venda desses produtos em escolas e hospitais. Outra ideia é limitar o espaço dos ultraprocessados nas prateleiras dos supermercados.

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Há exemplos de que políticas assim funcionam. No Brasil, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) praticamente eliminou os ultraprocessados das merendas e estabeleceu que, até 2026, 90% dos alimentos servidos devem ser frescos ou minimamente processados.

Além disso, uma das estratégias sugeridas é usar impostos sobre ultraprocessados para financiar subsídios que barateiem alimentos frescos para famílias de baixa renda. 

“É importante garantir que alimentos frescos e minimamente processados sejam acessíveis e economicamente viáveis, não apenas para quem tem tempo para cozinhar, mas também para famílias e indivíduos com rotinas mais intensas. Somente combinando uma regulação mais firme dos produtos de baixa qualidade com apoio concreto a escolhas mais nutritivas poderemos promover dietas melhores para todos”, defende Gyorgy Scrinis, professor associado da Universidade de Melbourne (Austrália).

Resposta global para enfrentar o lobby 

O terceiro e último artigo da série coloca em perspectiva o peso das grandes corporações na expansão dos alimentos ultraprocessados. Segundo os pesquisadores, não são as escolhas individuais que estão puxando esse movimento, mas sim a forma como essas empresas estruturam a produção, a distribuição e a comunicação desses produtos. Para eles, uma resposta coordenada de saúde pública em nível global não é só necessária, como é possível.

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Eles explicam que as empresas do setor trabalham com ingredientes de baixo custo e processos industriais que reduzem despesas, junto a estratégias de marketing e design que impulsionam o consumo. Os números ajudam a perceber a dimensão do fenômeno. As vendas globais de ultraprocessados chegam a US$ 1,9 trilhão por ano, tornando esse o segmento mais lucrativo da indústria de alimentos. Além disso, desde 1962, fabricantes desses produtos foram responsáveis por mais da metade dos US$ 2,9 trilhões distribuídos a acionistas por empresas de alimentos listadas em bolsa.

A série descreve também como essas empresas atuam politicamente para preservar seus interesses. Isso inclui articular grupos de pressão em diferentes países, fazer lobby com representantes públicos, financiar campanhas e recorrer a disputas judiciais para dificultar a implementação de regulações.

“São as grandes corporações, e não as escolhas individuais, que estão por trás da expansão global dos ultraprocessados. Por meio de grupos de interesse, elas se apresentam como parte da solução, mas suas ações mostram um foco claro em proteger lucros e resistir à regulação efetiva”, afirma Simon Barquera, pesquisador do Instituto Nacional de Saúde Pública do México.

Diante desse cenário, os autores defendem uma resposta coordenada de saúde pública que inclua proteger os processos de formulação de políticas contra interferências da indústria, encerrar vínculos entre empresas de ultraprocessados e organizações ou profissionais de saúde e criar uma rede internacional de articulação política dedicada ao tema.

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“Assim como enfrentamos a indústria do tabaco há décadas, precisamos agora de uma resposta global e coordenada para conter o poder desproporcional das corporações de ultraprocessados e construir sistemas alimentares que priorizem a saúde e o bem-estar das pessoas”, defende Karen Hoffman, professora da Universidade de Witwatersrand (África do Sul).

A série destaca ainda que enfrentar o problema exige uma revisão mais ampla dos sistemas alimentares, valorizando produtores locais, preservando tradições culturais e garantindo que os benefícios econômicos da produção retornem às comunidades, e não apenas aos acionistas.

“Vivemos hoje em um mundo onde nossas escolhas alimentares são fortemente influenciadas pelos ultraprocessados, contribuindo para o aumento global da obesidade, do diabetes e de problemas de saúde mental. Nossa série na The Lancet mostra que um caminho diferente é possível — um caminho em que governos regulam com eficácia, comunidades se mobilizam e dietas saudáveis se tornam acessíveis e viáveis para todos”, diz o pesquisador Phillip Baker, da Universidade Nacional da Austrália.

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