counter Sérgio Machado relembra laço com Jorge Amado em documentário: ‘Padrinho’ – Forsething

Sérgio Machado relembra laço com Jorge Amado em documentário: ‘Padrinho’

Ainda criança, entre os anos 1970 e o começo dos 1980, o diretor Sérgio Machado vivia em Salvador, na Bahia, com a mãe, que frequentemente o levava a terreiros de candomblé, ou recebia emblemáticas mães de santo em casa. Ainda sem entender exatamente o que se passava, o cineasta desenvolveu uma fascinação vitalícia pelas figuras marcantes que, mais tarde, reconheceria como alicerces da cultura baiana que molda sua própria identidade e, claro, a carreira que vem construindo desde Cidade Baixa (2005). A partir da formação, Machado não tardou para conhecer — primeiro à distância, depois pessoalmente — o icônico escritor baiano Jorge Amado e, depois, descobrir sua amizade com o músico Dorival Caymmi (1914 – 2008) e com o pintor brasileiro-argentino Carybé. Juntos, não só se divertiam, como também exerciam o papel de Obás de Xangô — representantes e protetores do candomblé eleitos pelas lideranças do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Os anos de admiração pelo trio resultam no documentário 3 Obás de Xangô, que chega aos cinemas em 4 de setembro.

Em entrevista a VEJA, Machado pondera sobre espiritualidade, as inspirações pessoais por trás do longa, o legado dos três artistas, a força da intolerância religiosa e o que define a baianidade, entre outros temas:

De onde surgiu a ideia de fazer esse documentário? Eu tenho uma relação muito longa com os três. Se eu faço cinema, é por causa do Jorge Amado, porque ele foi uma espécie de padrinho no começo da minha carreira. Ele viu um curta que eu fiz na faculdade e se encantou por ele, e a partir daí o recomendou para o Walter Salles, me ajudou para caramba. Essa relação depois continuou com a família dele. Quando eu ia fazer o meu primeiro filme, inclusive, o Cidade Baixa, minha ideia inicial era uma trama de época que misturava os universos de Amado, Caymmi e Carybé nos anos 1950. Comecei a desenvolver o projeto com ajuda do Karim Aïnouz, mas aí o Eduardo Coutinho me falou: “Não, esquece esse negócio de fazer filme de época, esse é o seu primeiro filme, conta uma história da Bahia que você viveu”. Por conta disso, estou navegando neste universo há mais de 20 anos. Enfim, o convite para rodar o documentário veio do produtor Diogo Dau. Topei, desde que pudesse fazê-lo a partir de como essa história me toca.

Caymmi, Amado e Carybé foram figuras públicas muito registradas. Como foi o processo de coleta de material para o filme? Demos muita sorte, o João Moreira Salles, que é um grande documentarista e irmão do Walter, filmou o Jorge Amado há 30 anos. Quando ele soube que eu estava fazendo um filme sobre os três, ele me deu de presente mais de 30 horas de material . Tem algo de muito íntimo nessas gravações. Vemos, por exemplo, o Jorge e Carybé em meio a brincadeiras, descontraídos.

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O filme retrata os três pelo prisma do candomblé. O quanto a espiritualidade e o cinema se conectam em seu trabalho? O filme é muito pessoal por isso, porque minha mãe era de candomblé e eu frequentava o terreiro quando era criança. Depois que eu saí de Salvador, há 25 anos, eu me afastei um pouco do universo. Esse filme está me fazendo voltar para essas raízes. Com ele, queria colocar a amizade dos três como ponto central, mostrar aquela bomba de afetividade, mas também falar de algo que considero politicamente importante: a intolerância religiosa. Ela persiste. “Obá” quer dizer ministro e é um cargo inventado por Mãe Aninha [Eugênia Ana dos Santos, fundadora do terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador], que teve a ideia de compor um corpo de representantes para a proteção do candomblé e a defesa da afro-brasilidade. Essa é uma iniciativa nacional que continua viva até hoje. Gilberto Gil é um Obá. A tradição é fundamental.

O quanto essa tradição permanece inabalada? Tudo está abalado, o mundo está abalado. É um momento de muita dificuldade, mas acho que o candomblé carrega um tom diferente. Dorival Caymmi e Muniz Sodré, no documentário, falam que o candomblé é um dos lugares do mundo onde o feminino está mais resolvido. Compartilho um pouco dessa sensação. É uma tese que tem a ver com a obra de Jorge Amado, com a de Caymmi e com a de Carybé — e com a minha também. Existe uma centralidade feminina na Bahia  que creio estar relacionada às mães de santo. A Bahia é uma terra de mulheres líderes em hierarquias que existem também na África. Essa abertura ao feminino às vezes até se reflete na atitude das pessoas, como se vê em baianos conhecidos como Caetano, Gil e o próprio Dorival Caymmi. Essa cultura não escamoteia o lado feminino e mesmo os homens se deixam permear pela força da mulher. Essa é uma característica baiana que permanece apesar de tudo.

Como foi chegar à lista final de entrevistados? Eu queria que todos fossem baianos e que quase todos fossem ligados ao candomblé. Um exemplo é Itamar Vieira Júnior, que, assim como eu, foi “adotado” pelo Jorge Amado. Minha ideia era falar sobre a baianidade contemporânea.

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Alguma das entrevistas foi mais contundente ou difícil de enxugar para o documentário? Uma que mexeu comigo foi a do Muniz Sodré, que considero um um dos maiores intelectuais brasileiros. Ele corrobora algumas teorias minhas, incluindo a que foi principal ao meu processo. Todo mundo diz que Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé inventaram uma Bahia mitológica, mas discordo. Eles traduziram seus meios. As reais inventoras desse imaginário são as grandes mães de santo, como Mãe Aninha, Mãe Senhora, Mãe Menininha e muitas outras. Eles, como eram homens e tinham fala, levaram isso adiante.

A narração do documentário ficou a cargo de Lázaro Ramos, seu colaborador de longa data. Como é a relação de trabalho com ele? Sequer existia narração a princípio, só pensei em chamá-lo para ler cartas. Quando fui entrevistá-lo, uma coisa levou à outra. Já fizemos muita coisa juntos e estamos até desenvolvendo um novo projeto agora mesmo — eu, ele e Wagner Moura. Está engatinhando, mas vai rolar. Wagner teria lido cartas para o filme, mas estava nos Estados Unidos. Quando mandei o longa para ele, recebi como resposta: “Adorei esse documentário, me emocionei para caramba, mas você tem um grave defeito: não tem eu”. Esse companheirismo diz muito sobre a Bahia. A cultura baiana não é feita de rupturas. O documentário mostra que Glauber Rocha, João Ubaldo Ribeiro e muitos mais frequentavam a casa de Jorge Amado. Todos transitavam por ali. A geração seguinte — Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Tom Zé, entre outros — não rompe com a anterior. A passagem de bastão é sempre muito afetuosa.

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