Embora esteja acostumada a ocupar alguns dos cargos mais altos da diplomacia internacional, María Fernanda Espinosa, 61 anos, fala com a calma de quem conhece a política global por dentro — e sabe exatamente onde ela falha. Ex-ministra das Relações Exteriores e da Defesa do Equador, ex-embaixadora em Genebra e Nova York e a primeira mulher da América Latina a presidir a Assembleia Geral da ONU, Espinosa é hoje uma das vozes mais influentes no debate sobre governança global, clima e multilateralismo — e um dos nomes cotados para substituir António Guterres, quando o mandato do secretário-geral da ONU acabar em dezembro de 2026. Sua carreira, porém, começou muito longe dos altos salões da diplomacia: nas comunidades indígenas da Amazônia equatoriana, onde estudou sistemas de conhecimento, biodiversidade e modos de vida sustentáveis, temas que marcariam toda sua atuação posterior.
Com mais de 30 anos de experiência em negociações multilaterais, ela hoje ocupa posições-chave em conselhos internacionais e preside a Cities Alliance (C40), rede que reúne mais de 40 governos e organizações dedicadas ao desenvolvimento urbano. Nos últimos anos, participou dos comitês consultivos das COP28 e COP29 e co-lidera iniciativas que buscam transformar o sistema financeiro internacional e torná-lo compatível com a emergência climática. Em entrevista a VEJA, Espinosa fala com franqueza rara: alerta em plena COP30 que o financiamento climático está travado, que a arquitetura multilateral foi pensada “para outro século” e que as cidades — não os Estados — são hoje a verdadeira linha de frente da descarbonização. Defende que povos indígenas estejam “no centro da transição”, explica por que países dependentes de petróleo enfrentam dilemas existenciais e afirma que a ONU corre o risco de perder relevância se não passar por uma reforma profunda. Espinosa analisa ainda o papel do Brasil, as contradições entre discurso ambiental e dependência econômica, o avanço do crime organizado na América Latina e o futuro do sistema multilateral. A seguir, os principais trechos da conversa.
A senhora participou recentemente da cúpula do C40, no Rio de Janeiro. Que ideias ou compromissos concretos ali pareceram mais promissores? O que me marcou foi a energia muito positiva da cúpula — não um otimismo ingênuo, mas um otimismo baseado em trabalho concreto. As cidades estão assumindo a liderança da descarbonização porque é nelas que as pessoas vivem e onde as emissões acontecem. Mais de 70% da população mundial está em áreas urbanas, e cerca de 75% das emissões vêm das cidades. Vi compromissos sérios em temas como mobilidade, transporte público, acesso universal à energia, ações para reduzir metano e investimentos em infraestrutura resiliente. E não só em megacidades: cidades pequenas também apresentaram políticas ousadas. Outro ponto forte foi a discussão sobre renaturalização urbana — trazer a natureza de volta para dentro da cidade não é só ambiental, é também saúde, inclusão e adaptação climática. Ver cidades amazônicas debatendo isso foi especialmente relevante, porque a Amazônia é mais urbana do que a maioria das pessoas imagina.
Apesar do otimismo, as cidades não enfrentam limites frente à inação dos Estados nacionais? O limite mais evidente é o financiamento. As cidades têm planos, têm metas, têm conhecimento técnico — mas não têm acesso ao capital que precisam para implementar tudo isso. Hoje, somente 3,5% do financiamento climático multilateral chega aos pobres urbanos. E, quando olhamos para mulheres, o percentual é ainda menor. Ou seja: parte significativa das populações mais vulneráveis está completamente fora do fluxo de recursos que deveriam beneficiá-las. Esse descompasso entre ambição e financiamento é um obstáculo real para acelerar a transição urbana.
Como garantir que a transição verde não reproduza desigualdades — ou até aprofunde? Essa é uma preocupação central. A transição atual, do jeito que vem sendo financiada, tende a excluir os mais vulneráveis, porque o sistema de financiamento climático foi concebido para países, e não para cidades, muito menos para populações invisibilizadas. Por isso defendo mudanças profundas: criar janelas de financiamento específicas para governos locais, permitir acesso direto, reduzir burocracias, simplificar a análise de risco e direcionar recursos para quem vive em favelas, periferias, áreas ribeirinhas, comunidades tradicionais, pessoas com deficiência, pequenos estados insulares. Também precisamos de mecanismos que reconheçam o valor do cuidado e do trabalho de mulheres na adaptação climática. Sem corrigir essa arquitetura, não teremos uma transição justa.
Por que essa arquitetura financeira é tão resistente à mudança? Ela foi desenhada para outro mundo — um mundo com menos riscos, menos choques climáticos, menos urgência. Hoje, os procedimentos são lentos, os critérios de risco são antiquados e há pouca criatividade financeira. Destravar isso exige três frentes: a primeira é repensar o risco para entender que não investir em adaptação é mais arriscado do que investir; a segunda é reformar bancos multilaterais para que tenham mais liquidez, mais capacidade de alavancar capital e mais flexibilidade; a terceira é atrair o setor privado, que só virá se houver garantias, instrumentos e previsibilidade. As ferramentas existem. O que falta é vontade política e coragem institucional. Precisamos dar um salto quântico até termos os US$ 1,3 trilhões por ano de que os países necessitam para se adaptar e fazer a transição a uma economia mais verde.
O Brasil é visto como líder ambiental, mas também como grande exportador de commodities fósseis. Como lê esse paradoxo? Eu não enxergo contradição; vejo como a realidade complexa de países que ainda dependem de combustíveis fósseis para financiar políticas públicas básicas — educação, saúde, transporte, segurança. Transições são sempre tensas. Exigem escolhas difíceis, especialmente em países muito desiguais. Por isso iniciativas como o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), liderado pelo Brasil, são tão importantes. Elas apontam para um modelo econômico que valoriza serviços ecossistêmicos e soluções baseadas na natureza. Vocês tem uma vantagem enorme: ciência, dados e capacidade institucional. E tem a Amazônia, que é um ativo global. Se conseguirem transformar esse ativo em valor econômico de maneira justa, pode redefinir o que é desenvolvimento no século XXI.
E onde entram os povos indígenas, muitos dos quais habitam a Amazônia, nessa visão de desenvolvimento? Os povos indígenas não estão à margem da transição; eles são o centro dela. Não só por uma dívida histórica, mas porque eles protegem cerca de 80% da biodiversidade global e desenvolvem, há séculos, formas de manejo e adaptação que o resto do mundo tenta aprender agora. É fundamental reconhecer seus territórios, garantir autonomia e respeitar seus modelos próprios de desenvolvimento. Não se trata de inserir povos indígenas numa agenda “moderna”, mas de reconhecer que são eles que guardam o que há de mais valioso para o futuro da humanidade.
Na reta final dos preparativos para a COP, o Brasil concedeu à Petrobrás licença para perfurar um poço exploratório na Margem Equatorial. Há quinze anos, a senhora foi uma das idealizadoras da Iniciativa Yasuní, que fracassou quando o Equador decidiu explorar o petróleo na Amazônia. Que lições daquele processo ainda valem hoje? A Iniciativa Yasuní antecipou conceitos que agora estão finalmente amadurecendo — como pagamento por emissões evitadas, compensação por manter petróleo no subsolo, e o valor econômico dos serviços ecossistêmicos. Na época, o mundo não estava pronto para esse debate. Mas o Yasuní plantou a semente. Hoje vemos propostas como o TFFF, variações de créditos jurisdicionais, fundos de florestas tropicais — tudo isso nasce, em parte, do que tentamos construir lá atrás. O Yasuní mostrou que soluções inovadoras para proteger áreas sensíveis não só são possíveis, como são urgentemente necessárias.
O governo equatoriano decidiu suspender o cumprimento do plebiscito que ordenava parar a exploração no Yasuní. O Brasil também deveria fazer consulta pública? Cada país tem sua própria dinâmica política e fiscal. Mas há princípios que são universais: áreas ecologicamente sensíveis, especialmente aquelas com povos isolados, exigem um cuidado extremo. A Constituição equatoriana estabelece proteção clara para essas zonas. Essas decisões precisam ser tomadas com base científica, transparência total e responsabilidade intergeracional. O mundo está olhando, e com razão.
Depois do fracasso da meta de 1,5°C, países deveriam parar de aprovar novas licenças de petróleo? A decisão da COP28 de Glasgow — “transicionar para longe dos combustíveis fósseis” — aponta o caminho. Mas cada país seguirá esse caminho em ritmos diferentes, porque a realidade fiscal e social é muito desigual. Muitos países de renda média e baixa têm pouco espaço fiscal, dependem da receita de combustíveis fósseis e precisam garantir serviços básicos. Cortes abruptos em subsídios podem gerar crises sociais profundas. Por isso, a transição precisa ser ambiciosa, sim, mas também justa. Isso envolve reestruturação de dívidas, financiamento concessionário, instrumentos de garantia, e um compromisso real dos países ricos com responsabilidades diferenciadas.
Seu nome é um dos mais cotados para suceder António Guterres como secretária-geral da ONU, em um momento em que há muito debate sobre o enfraquecimento da organização. O sistema multilateral falhou? O mundo precisa da ONU mais do que nunca. Mas a instituição foi pensada para os desafios de 1945, não para os de hoje. A ONU cresceu em mandatos, projetos e burocracia, mas não ganhou capacidade de resolver problemas transnacionais. Ela reage a crises, quando deveria preveni-las. Isso não significa que devamos abandoná-la — significa que devemos transformá-la profundamente. Não basta reforma incremental. Precisamos repensar a arquitetura: priorizar prevenção, focar no papel normativo e coordenador, e reduzir duplicações que drenam recursos.
Qual seria sua postura à frente da instituição? Começaria pelo essencial: definir o que só a ONU pode fazer. A ONU tem vocação para estabelecer normas globais, articular respostas coletivas e prevenir crises. Também reformaria a governança para dar mais voz aos países em desenvolvimento, descentralizaria operações, reforçaria equipes de campo e alinharia o financiamento aos mandatos — algo que hoje está completamente descompassado. E, claro, traria para o centro da agenda desafios que atravessam fronteiras: crime organizado transnacional, mudanças climáticas, inteligência artificial, biosegurança. Esse é o mundo real. A ONU precisa entrar nele.
Como no seu país, o Brasil vê um aumento da violência. O Equador adotou uma agenda de segurança linha dura (sobre a qual a ONU recentemente soou alerta devido ao cerceamento de liberdades fundamentais), coisa que a direita brasileira gostaria de emular. Como ex-ministra da Defesa, acredita que esse tipo de resposta militarizada pode, de fato, trazer estabilidade? O crime organizado evoluiu mais rápido que os Estados nacionais. Ele é transnacional. Ele opera em redes, fluxos financeiros, tecnologia, logística. Nenhum país consegue enfrentar isso sozinho. A resposta tem que ser regional, articulada, persistente e baseada em cooperação real. Isso inclui desde inteligência e tecnologia até diálogo entre países de origem e destino das economias ilícitas. E há também um componente humano: mulheres e meninas são as principais vítimas do tráfico humano na região. Sem políticas que coloquem essas vítimas no centro, não há solução duradoura. Esse tema, da colaboração, deveria ter sido mais prioritário no fórum da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).