Em meio a essa eterna e profunda epidemia de criminalidade que nos assola, mais uma vez a busca de soluções (o firme enfrentamento à delinquência) ganha contornos de espetáculo.
Medidas com boa aceitação pública são anunciadas como soluções, mas deixam intacto o núcleo do problema. É o caso do selo de conformidade para bebidas alcoólicas recentemente anunciado pelo governo de São Paulo, em parceria com a indústria, como resposta à crise das bebidas falsificadas e adulteradas com metanol. A iniciativa parece correta à primeira vista. Mas não resolve o que realmente importa.
O selo certifica distribuidores e comerciantes, que são a ponta final da cadeia, e ignora justamente onde o crime nasce: na produção. É como posicionar um segurança armado na saída de um banco depois que o assalto já ocorreu pela porta dos fundos. Trata-se de uma medida sem real eficácia, que objetiva enrolar a sociedade e deixar de fazer o que deve ser feito.
No mercado de bebidas, a fraude acontece antes do produto chegar ao balcão. Ao focar apenas quem vende, o Estado deixa passar, sem vigilância efetiva, os locais onde se dão a adulteração, o desvio e a sonegação.
…e uma ideia meia-boca – para resolver um problema sério – merece ser rejeitada com uma boa dose de energia, pois a sua adoção pode fechar a questão, impedindo que soluções efetivamente eficazes possam ser colocadas em prática.
Vale lembrar que a falsificação de bebidas é um crime industrial. É na fabricação, antes do envase, que se adiciona metanol, se desvia etanol anidro, se manipula o volume produzido e se burlam tributos. Sem controle da linha de produção, o poder público permanece cego para o problema real. Por isso, selos meramente cosméticos têm baixa efetividade e ainda criam uma perigosa ilusão de segurança, induzindo o consumidor ao erro. Não existe segurança sanitária sem rastreabilidade desde a origem. Quando a produção é monitorada desde o envase, é possível saber exatamente o que está sendo colocado no mercado.
No Brasil, porém, prevalece desde 2016 um modelo autodeclaratório, adotado após o desligamento do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe). O resultado é o descontrole que assistimos, em especial, nesta crise do metanol. E os delinquentes entendem rapidamente esse tipo de sinal. Não é à toa que o crime organizado vem cada vez mais avançando sobre esse e outros mercados estratégicos.
Quando autoridades policiais apontam a presença do PCC e de outras facções no setor de bebidas, não se trata de retórica. Trata-se de diagnóstico baseado em décadas de investigação. O modus operandi é conhecido: identificar falhas na fiscalização, infiltrar-se em setores lucrativos e estruturar esquemas de falsificação, sonegação e lavagem de dinheiro. Um mercado que movimenta cerca de R$ 200 bilhões por ano, com fiscalização fragilizada, passa a ser convidativo para o crime, tornando-se um alvo natural.
Nesse contexto, o selo de conformidade anunciado pelo governo paulista transfere a responsabilidade para quem está na ponta da cadeia. É confortável para quem produz, mas ineficaz para quem busca segurança real. Um bar pode checar notas fiscais, exigir documentação e cumprir todas as regras. Ainda assim, se a bebida já sai adulterada da origem, o comerciante acaba vítima e, involuntariamente, parte do problema.
A medida pode até enfeitar vitrines, mas não rastreia veneno. Enquanto a produção continuar fora do radar, tragédias evitáveis seguirão acontecendo, vidas serão perdidas e o poder público continuará simulando ação.
Crimes estruturais não se resolvem com medidas periféricas. Exigem enfrentamento político, coragem para contrariar lobbies e disposição para reconstruir sistemas de controle que incomodam interesses econômicos, mas protegem a saúde pública. A rastreabilidade desde a produção é princípio simples e inegociável. Qualquer proposta que ignore esse ponto é paliativa, quando não pura encenação regulatória.
O Brasil tem tecnologia, quadros técnicos e referências internacionais para implementar sistemas modernos de controle. O que falta não é capacidade, mas decisão política. Enquanto celebramos selos de papel nos balcões, o crime organizado opera com eficiência industrial. E o consumidor segue exposto.
Se a prioridade é proteger vidas, a resposta não pode ser decorativa. Afinal, a segurança deve se manifestar desde a origem, não no balcão.
Enfim, trata-se de um projeto que além de não ajudar, ainda atrapalha, pois nos afasta das soluções definitivas para o problema.