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Saúde destina R$ 30 mi para plantas e fitoterápicos; especialistas questionam eficácia

No fim de setembro, o Ministério da Saúde anunciou a transferência de R$ 30 milhões para 1.304 municípios com o objetivo de ampliar o uso de plantas medicinais e fitoterápicos no Sistema Único de Saúde (SUS). A medida, oficializada pela portaria GM/MS Nº 5.619, integra o Programa Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), que reúne também terapias como auriculoterapia, meditação, hipnoterapia, cromoterapia e até ozonioterapia, prática que vem levantando debates por falta de comprovação científica.

Segundo a pasta, o investimento nas plantas medicinas e fitoterápicos busca “reconhecer e valorizar tradições culturais”, além de garantir o “uso seguro e racional” dessas práticas. Mas, para especialistas ouvidos pela reportagem, a iniciativa — que contempla desde capitais como Salvador e Fortaleza até pequenos municípios da Amazônia e do semiárido nordestino — carece de fundamentação científica e transparência. O principal ponto de crítica é a ausência de critérios técnicos claros e de avaliação de custo-efetividade, ferramentas indispensáveis em políticas públicas de saúde.

“É uma iniciativa que precisaria de melhor detalhamento. Um investimento dessa ordem, que não é qualquer coisa, precisa vir apoiado por uma documentação robusta, que detalhe, por exemplo, a motivação por trás disso e quais os tipos exatos de fitoterápicos e plantas serão incluídos, algo que não ocorreu”, afirma Paulo Almeida, diretor executivo do Instituto Questão de Ciência (IQC).

Ele lembra que áreas básicas do SUS continuam carentes de recursos, o que torna a decisão ainda mais questionável. Além disso, a grande maioria das práticas inseridas no PNPIC não passou por avaliação da Conitec, órgão responsável por verificar eficácia, segurança e custo-efetividade — avaliando, por exemplo, se existem fármacos mais eficazes e baratos antes da incorporação de qualquer tecnologia em saúde. “Isso é um problema sério, tanto de segurança pública quanto de mau uso de recursos”, diz Almeida.

Nesse ponto, o farmacologista André Bacchi, professor da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), complementa que esse tipo de investimento pode acabar sendo um “tiro pela culatra”. E o problema não se restringe aos fitoterápicos e plantas medicinais, já que qualquer tratamento usado de forma ampla pode acabar sendo aplicado em lugar de tratamentos já comprovados.

“Às vezes, o paciente recebe algo que não funciona para uma condição séria e sente que está sendo tratado. Na prática, isso atrasa o diagnóstico correto e o início de terapias realmente eficazes, o que não só prejudica o paciente, mas também gera desperdício de recursos e aumenta os custos para o sistema de saúde a longo prazo.”

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Práticas integrativas decolam no SUS

Apesar das críticas, o uso de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde vem crescendo. Dados divulgados em setembro pela Agência Brasil mostram que, de janeiro a agosto de 2025, quase 4 milhões de pessoas participaram de procedimentos desse tipo na atenção primária do SUS — um aumento de 14,2% em relação ao mesmo período de 2024. Entre os destaques está a auriculoterapia, responsável por 26% do crescimento. A técnica utiliza a orelha como microssistema para tratar condições físicas, mentais e emocionais por meio de agulhas, cristais, sementes e outros estímulos.

Também registraram crescimento expressivo as PICS coletivas, incluindo práticas corporais da medicina tradicional chinesa (+13%), uso de plantas medicinais e fitoterapia (+11%) e meditação (+8%).

Diante desses números, o investimento parece fazer sentido. Afinal, se há utilização crescente, por que não ampliar o acesso? Porém, Bacchi alerta que é preciso ler os dados com cautela. “Quando falamos que 4 milhões de pessoas fizeram auriculoterapia, chá de plantas ou meditação, isso não quer dizer que essas práticas tiveram resultado terapêutico. É um volume de uso, popularidade, não sinônimo de eficácia. E, no SUS, o que importa são os desfechos clínicos: quem melhorou, quem evitou internação, quem preservou a qualidade de vida. Sem isso, a estatística só mostra popularidade.”

Ele destaca ainda que a falta de diretrizes claras sobre quais plantas e fitoterápicos serão financiados e para quais condições clínicas pode gerar heterogeneidade de práticas entre municípios, dificultando o acompanhamento de efeitos adversos, a farmacovigilância e a avaliação real do impacto na saúde da população.

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“A erva de São João, por exemplo, tem efeito antidepressivo reconhecido em casos leves e moderados, mas pode interferir com contraceptivos e anticoagulantes. Já o ginkgo biloba, superutilizado, aumenta o risco de sangramento. Sem diretrizes ou mesmo preparo de equipes, podemos estar falando de efeito inverso: pessoas que acabam prejudicadas dependendo do uso.”

Além disso, o especialista destaca que a fitoterapia está longe de ser trivial: cada planta representa uma intervenção diferente, com variações em dose, preparo e forma de administração – detalhes que também ficam de fora na portaria do Ministério da Saúde.

Reconhecimento cultural

Apesar de toda a discussão, práticas tradicionais como o uso de plantas medicinais carregam significados que vão muito além do efeito farmacológico. Em algumas comunidades, elas representam o único acesso a cuidados e podem oferecer bem-estar, além de fortalecer o senso coletivo.

“O reconhecimento cultural é sempre legítimo e importante. Desqualificar essas práticas arbitrariamente seria insensível e até arrogante”, ressalta Bacchi. Mas ele enfatiza que respeitar a tradição não significa abrir mão do rigor científico. “O conhecimento tradicional deve ser um ponto de partida para a pesquisa, não o ponto de chegada.”

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Ele lembra que muitas plantas que deram origem a medicamentos surgiram de observações populares, mas só se tornaram fármacos após testes rigorosos. Hoje, há entusiasmo pelo uso de plantas e pelo cuidado mais “natural”, mas o investimento em pesquisa nem sempre acompanha esse movimento. “A sociedade busca ferramentas de cuidado, não pesquisa. Para o governo, oferecer essas ferramentas parece fazer sentido diante do apelo, mas antes disso é preciso investir em estudos de qualidade. Só assim é possível equilibrar valorização cultural e rigor científico.”

O que diz o Ministério da Saúde?

O Ministério da Saúde foi questionado sobre diversos pontos da destinação dos R$ 30 milhões, como a motivação do investimento neste momento, levantamento sobre os impactos de experiências anteriores, formas de garantir que as intervenções tenham respaldo científico, além do monitoramento da qualidade, padronização, rastreabilidade e possíveis efeitos adversos.

A pasta, no entanto, não respondeu a todos os questionamentos, limitando-se a afirmar que o investimento atende a demandas sociais expressas em conferências de saúde e representa apenas 0,18% do total destinado à assistência farmacêutica no SUS. Segundo o ministério, “cada ação da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos está sujeita à regulamentação específica, rigorosamente observada pelos executores, com monitoramento conduzido pela vigilância sanitária local e, quando necessário, pela Anvisa”.

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