Eu não sabia, você talvez não soubesse também, que doenças como diabetes afetam a voz. É de uma maneira sutil, que nossos limitados ouvidos humanos não percebem. Mas as IAs, sim. Essa é a base para uma série de iniciativas que buscam diagnosticar a doença com base na análise de arquivos de áudio.
Funciona assim: a pessoa fala uma frase curta, geralmente com duração entre 6 e 10 segundos. No celular mesmo. Claro que num lugar menos barulhento é o ideal, certo? Daí essa gravação é convertida em dados numéricos que a inteligência artificial analisa. São dezenas de parâmetros que as máquinas detectam com muito mais precisão que nós: variações de frequência da voz, força com que as cordas vocais vibram, pequenas irregularidades e ressonâncias.
Em alguns casos, o paciente precisa fornecer dados adicionais à gravação: idade, gênero, peso e índice de massa corporal. Essas infos ajudam a contextualizar e aumentam a precisão. Num estudo recente divulgado em Portugal, a tecnologia conseguiu índice de 89% de acerto em mulheres e 86% nos homens – números que rivalizam com métodos tradicionais de detecção.
Dois anos em busca do diagnóstico por voz
O aplicativo é fruto de uma linha de pesquisas que vem se acelerando nos últimos anos, em diferentes laboratórios ao redor do mundo. Em 2024, o Instituto de Saúde de Luxemburgo publicou na PLOS Digital Health um estudo com mais de 600 voluntários nos Estados Unidos. O modelo de inteligência artificial atingiu taxas de acerto comparáveis às do tradicional ADA Risk Score, usado pela Associação Americana de Diabetes.
Um ano antes, em 2023, pesquisadores do Klick Labs (a mesma que tratou do tema em Portugal agora em 2025) já tinham chamado atenção ao publicar um trabalho pioneiro na Mayo Clinic Proceedings: Digital Health. Eles coletaram mais de 18 mil gravações de voz de 267 pessoas, pedindo que repetissem frases curtas várias vezes ao longo de duas semanas.
Esses resultados ajudaram a consolidar a ideia de que doenças metabólicas, embora não pareçam ligadas à voz, podem alterar sutilmente a fisiologia das cordas vocais e do aparelho respiratório. Retenção de líquidos, microinflamações ou danos nervosos podem se refletir em variações mínimas de fala — e a IA consegue capturar sinais invisíveis para nós.
Próxima parada: avaliar níveis de glicose com IA
Do ponto de vista de saúde pública, a proposta tem apelo imediato. Testes de voz são baratos, não invasivos e podem ser feitos em qualquer celular. Em regiões com pouco acesso a exames laboratoriais, a tecnologia poderia funcionar como triagem inicial, encaminhando apenas os casos mais suspeitos para avaliação clínica completa. Mais uma vez, chegamos àquela ideia de IA como copiloto, não como substituta.
Ainda assim, é cedo para comemorar como solução pronta. As pesquisas iniciais foram feitas em grupos relativamente homogêneos, como indianos não fumantes no caso do Klick Labs. Vozes de pessoas com sotaques diferentes, fumantes ou com doenças respiratórias podem trazer ruído ao modelo. Há também o risco de falsos positivos ou negativos, com impactos diretos na vida de quem recebe o resultado.
Mesmo com essas limitações, o campo avança rápido. Há trabalhos em andamento tentando ir além do diagnóstico: monitorar níveis de glicose pela voz ao longo do dia, o que poderia liberar pacientes da rotina de picadas no dedo. Outros grupos estudam integrar o recurso em assistentes virtuais domésticos, transformando a conversa com a Alexa ou o Google Assistant em um exame preventivo silencioso. Isso eu já acho um pouco mais delicado, porque não sou fã de ser analisado sem saber (muito embora esteja ciente de que acontece o tempo todo).