Na mesmíssima página, encontramos o escritor russo Fiodor Dostoiévski, autor de clássicos universais como Os Irmãos Karamázov, e o médico espanhol Santiago Ramón y Cajal, o homem que descobriu a unidade fundamental do cérebro, os neurônios. É assim, reunindo grandes nomes da arte e da neurociência em um texto envolvente, que o neurocirurgião Mario de la Piedra Walter tece seu itinerário sobre a criatividade humana em Mentes Geniais, recém-lançado pela editora Todavia.
Dos desenhos nas paredes das cavernas legados por nossos antepassados de milhares de anos atrás à era da inteligência artificial, o médico mexicano radicado na Alemanha nos conduz por um vivo museu, onde expõe o que as obras e experiências de dezenas de artistas célebres e revolucionários nos revelam sobre esse universo de bilhões de células e trilhões de sinapses alojado dentro do nosso crânio.
É uma galeria fascinante – e o mérito vai para o curador e guia, que soube costurar assuntos tão variados e por vezes complexos em uma narrativa didática, saborosa e gentil. Em seus corredores deparamos com os circuitos da memória, dos sonhos, das loucuras, das doenças mentais e neurológicas, dos sofrimentos, da neurodivergência e das habilidades surreais como a sinestesia, a capacidade de misturar os sentidos, enxergando sons e ouvindo cores.

E é por esse percurso que vamos apreciar pintores, escritores e músicos célebres – um panteão que aglutina, para citar alguns, Vassili Kandinski, Frida Kahlo, Andy Warhol, Franz Liszt, Virginia Woolf e Jorge Luis Borges. E só podia terminar com os desenhos pioneiros dos neurônios pincelados por ninguém menos que Ramón Cajal, um daqueles cientistas (e artistas) que lograram ser reconhecidos com um Prêmio Nobel.
Então passemos a bola ao nosso guia. Com a palavra, Mario de la Piedra Walter.
Sabemos que a linguagem teve um grande impacto no desenvolvimento do cérebro humano, mas até que ponto a arte em si contribuiu para moldá-lo? Acredito que temos que pensar na arte como uma das formas da linguagem. Até onde sabemos, a arte figurativa coincide com o nascimento da linguagem falada. Ou seja, os dois fenômenos se fazem presentes de forma conjunta na história humana. Em vez de pensar na arte influenciando o desenvolvimento do cérebro humano, seria mais apropriado dizer que o desenvolvimento do cérebro humano desembocou na arte.
Como se deu esse processo? Há dezenas de milhares de anos, mudanças na microestrutura do nosso cérebro concederam à nossa espécie uma capacidade de abstração antes nunca vista sobre a Terra. A capacidade de processar e manipular símbolos e criar ficção. Em um piscar de olhos do ponto de vista geológico, nossa espécie começou a produzir ferramentas, instrumentos musicais, vestimentas, estatuetas e pinturas, os cimentos dos ritos e das tradições que definem uma civilização. Nesse sentido, a arte é o sintoma de uma revolução cognitiva, que é a principal característica de nossa espécie.
Entre os relatos e personagens incríveis abordados no seu livro, há algum que mais o fascine devido a essa intersecção entre arte e neurociência? Sempre senti uma fascinação pela sinestesia, o fenômeno no qual o estímulo de um sentido ativa outro sentido. Entre as muitas formas de sinestesia, tenho um interesse pela forma auditivo-visual ou cromestesia, em que um som ou nota musical induz uma experiência visual. Indivíduos com essa capacidade podem literalmente ver a música ou escutar as cores. Artistas como Vasili Kandinski e Franz Liszt se valeram dessa habilidade para revolucionar a pintura e a música, respectivamente.
Mas o que ocorre de diferente no cérebro dessas pessoas? Não se trata de uma doença, mas de um fenômeno relativamente frequente, especialmente entre artistas. A informação proveniente dos sentidos (visão, olfato, tato, audição e paladar) se processa em áreas distintas do cérebro. Em um estado de hiperconectividade, persistem pontes neurais entre essas regiões, o que facilita a associação de sentidos diferentes. O reconfortante é que, em maior ou menor medida, todos nós possuímos a capacidade de criar novas conexões nervosas, a neuroplasticidade. A sinestesia, ainda que não seja tão aparente como no caso de Kandinski ou Liszt, é um fenômeno comum a todos nós. Grande parte de nossa linguagem deriva dela. Quando digo “Sua voz é amarga” ou “Seus lábios são doces”, estou associando sentidos distintos. Essa é a base de toda metáfora, e não preciso ser um poeta para chegar lá.
Diversos escritores e artistas apresentados em Mentes Geniais possuem algum transtorno mental ou neurológico. Podemos dizer, pedindo licença para usar termos populares que estão sendo cada vez mais rechaçados, que ser “diferente” do que se considera o “normal” é um atributo fundamental para o surgimento do “gênio”? Não gosto de falar em cérebros normais e anormais. Felizmente, existe uma grande diversidade de processos mentais. Isto é, as diferenças no desenvolvimento cerebral geram variações humanas naturais. A isso se chama neurodiversidade, algo tão importante para a sociedade como a biodiversidade é para um ecossistema. É claro que existem variações que fogem à “norma” em um sentido puramente estatístico – a neurodivergência. Quando esse desvio causa algum impedimento social, então há o que conhecemos como transtorno. Por outro lado, também não tenho certeza de qual o valor de ser “diferente”. Não vejo isso como um atributo positivo ou negativo, nem para os artistas nem para as pessoas em geral. Cada artista retratado foi gênio à sua maneira, com suas virtudes e carências, mas todos com uma capacidade extraordinária de transformar suas circunstâncias de vida em um impulso criativo.
Então o que esses gênios teriam em comum? Se há algo que une todos esses gênios criativos, a despeito de padecer ou não de uma doença, é a disciplina. A inspiração te encontra enquanto você está trabalhando.
Acredita que a crescente conexão com o universo digital e a inteligência artifcial (IA), que você também discute no livro, poderão alterar o cérebro humano? A maneira como acessamos as informações já afeta o nosso cérebro. Um estudo da Universidade de Valência, que incluiu mais de 470 000 participantes em um período de 20 anos, demonstrou que os hábitos de leitura do impresso podem aumentar a compreensão entre seis e oito vezes mais que a leitura digital. Da mesma forma, pesquisas apontam que o uso de ferramentas de IA como o ChatGPT diminuem nossa capacidade de raciocínio e pensamento crítico. Mas não devemos fazer uma apologia do passado nem romantizar hábitos que, queiramos ou não, sofrerão uma transformação. Pela boca de Sócrates, Platão se insurgiu contra a palavra escrita, argumentando que ela debilitava e destruía a memória. Mais adiante, Aristóteles atacou a prosa por, na sua visão, ser uma degradação da poesia. Muito tempo depois, criticou-se a fotografia porque ela ameaçava acabar com a pintura. Só que ocorreu o contrário: a fotografia projetou a pintura a lugares inimaginados.
Ou seja, há o lado bom e o lado ruim da tecnologia? É normal que a tecnologia ocupe novos nichos, não podemos evitar. Isso é, ao mesmo tempo, uma vantagem e uma desvantagem. Pode nos privar de certos processos, mas também nos libertar, permitindo alcançar outros tipos de informação antes impossíveis de se obter. Gosto de bater num ponto: não creio que isso tudo seja um problema tecnológico, senão político. Me preocupo mais com quem é dono dessa informação toda e quem pode manipulá-la. Especialmente se vai utilizá-la para perpetuar hierarquias de poder. O fato de tão poucos terem o monopólio sobre ela é o que deveria nos preocupar.
Você ressalta que os livros nos permitem entrar na vida de outras pessoas, sentir o que elas sentem… Em um mundo em que se lê cada vez menos e se fala de um individualismo crescente, quão fundamental é manter viva a chama da leitura? Das tabuletas de argila na Mesopotâmia de 4 000 anos atrás aos tablets do nosso século, a leitura nos permite compreender melhor o outro e a nós mesmos. Por meio dos neurônios espelho, encarnamos as angústias, as alegrias, as decepções, as vitórias e os fracassos de toda a vida humana. Como apontava um grande divulgador científico, Carl Sagan, ela é o que temos de mais próximo à magia. Através de um objeto físico entramos no pensamento de outra pessoa que viveu há centenas de anos. Mas tampouco me convenço de que ler nos faça necessariamente melhores.
Por quê? José Saramago, o magnífico escritor português, começou seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel dizendo: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”, em referência a seu avô analfabeto. Eu também não compro a ideia de que o mundo está cada vez mais individualista. Individualistas são aqueles que controlam o mundo. Ainda vejo uma grande cooperação nas ruas, no campo, no trabalho, na família, nas amizades. A mesma que nossos ancestrais experimentaram quando desenhavam nas paredes das cavernas as primeiras histórias da humanidade. Que não nos venham com outras ideias.