“Agora estou tomando retatrutida“. A frase, cada vez mais proferida entre encontros profissionais, almoços de negócios e conversas casuais, deveria soar a fake news. Afinal, essa medicação para obesidade ainda está em fase de estudo e, por isso, não foi aprovada para venda e uso em nenhum lugar do planeta. Contudo, depois dos princípios ativos de Ozempic e Mounjaro, clínicas e farmácias de manipulação no país se aproveitam de brechas regulatórias e já estão formulando sua suposta “versão” da droga experimental.
A ameaça: não se sabe ao certo o que as injeções levam, uma vez que as moléculas originais pertencem ao laboratório Eli Lilly, que está avaliando sua segurança e eficácia, nem se conhecem os efeitos e riscos a que os pacientes submetidos estão sujeitos.
“Vemos com muita preocupação esse fenômeno. Estamos falando de uma medicação que não está liberada para comercialização e não tem registro. Em tese, isso configura um crime porque estão utilizando substâncias sem uma autorização legal”, afirma o endocrinologista Neuton Dornelas, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).
“A Sbem espera que as autoridades competentes, tanto a Anvisa como o Ministério Público Federal, possam intervir nessa situação que coloca em risco a população brasileira.”
Embora a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tenha criado regras que dificultam a manipulação de remédios para obesidade cujas formulações originais são endossadas por pesquisas, especialistas dizem que há lacunas regulatórias que permitem a clínicas e farmácias receitarem e fabricarem as versões manipuladas.
O maior problema com a retatrutida é que ela não passou por todo o rito científico que atesta sua segurança e eficiência clínica – o estágio atual são os ensaios clínicos de fase 3, a última fase desse processo.
Os insumos que vão para as injeções são obtidos do exterior e tampouco é possível garantir a precisão e a qualidade das substâncias inoculadas, uma vez que a original é resguardada por patente e ainda se encontra em investigação.
A perigosa bola da vez
Embora não existam dados oficiais sobre a demanda e a produção no país, já que, em tese, não se trata de um produto avalizado pelas instâncias regulatórias, existem propagandas nas redes sociais e indicações de clínicas e profissionais que dizem aplicar a retatrutida manipulada.
“Quando se perde o entendimento de que a obesidade é uma doença crônica, que não tem cura, mas controle, praticantes da pseudociência, que se apresentam como médicos de vanguarda nas redes sociais querem vender a ‘próxima novidade’”, expõe o endocrinologista Clayton Macedo, diretor de comunicação da Sben. “Como a tirzepatida do Mounjaro já está no mercado, muitos desses profissionais agora migram para a retatrutida.”
O especialista, que, junto a Sbem, está à frente de uma campanha contra a desinformação e o uso equivocado e antiético de drogas manipuladas para perda de peso e implantes hormonais, vai além: “Mesmo sendo uma medicação em estudo, sem pedido para aprovação, nada impede a circulação clandestina no Brasil, que se dá via contrabando, prescrição irresponsável e divulgação como se fosse uma terapia consolidada e milagrosa, inclusive em clínicas sofisticadas e nos bastidores de Brasília.”
Para Macedo, esse cenário é altamente perigoso. “Modismo e oportunismo substituem a ciência e colocam pacientes em risco. Precisamos de ética, regulação, educação, fiscalização e punição a esse tipo de prática.”
+ ASSISTA: A próxima geração de medicamentos para obesidade
A retatrutida de verdade
O medicamento original, desenvolvido pela farmacêutica americana Eli Lilly, é o primeiro triplo agonista em estudo para o tratamento da obesidade – ele simula três hormônios fabricados naturalmente pelo organismo que atuam nos mecanismos de fome e saciedade e no balanço energético.
Pelos ensaios clínicos até agora, é a droga mais potente para perda de peso, chegando a prover até 30% de redução da massa corporal, índice similar ao de uma cirurgia bariátrica.
“A molécula é de fato promissora, mas os ensaios clínicos seguem em fase 3, etapa necessária antes de qualquer pedido de aprovação, produção ou comercialização”, esclarece Macedo.
Em nota a VEJA, a Lilly reforça que se trata de uma medicação “experimental, não aprovada por nenhuma autoridade regulatória no mundo, o que significa que não pode ser comercializada ou utilizada legalmente fora dos estudos clínicos“.
“Tentativas de manipular a retatrutida representam sérios riscos à segurança dos pacientes, semelhantes às preocupações com a manipulação em larga escala da tirzepatida. Esses produtos manipulados não foram testados e ainda podem conter ingredientes nocivos”, prossegue o comunicado exclusivo.
A Lilly ainda enfatiza que insumos e medicamentos comprados de fontes não regulamentadas, incluindo farmácias de manipulação, não estão sujeitos aos padrões de segurança e eficácia da indústria farmacêutica. E diz estar trabalhando ativamente com as autoridades nacionais e globais para combater medicamentos irregulares ou ilícitos, sejam eles manipulados ou falsificados.