Em dois novos estudos apoiados pela Fapesp, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) jogam luz sobre como interações entre predadores e presas influenciaram a extinção dos tigres-dentes-de-sabre e o fim da grande diversidade de antilocaprídeos, hoje reduzida a uma única espécie, o antílope-americano.
No primeiro trabalho, publicado no Journal of Evolutionary Biology, os pesquisadores utilizaram bancos de dados de fósseis, estimativas de tamanho corporal e dados sobre a variação climática na América do Norte e na Eurásia nos últimos 20 milhões de anos para traçar a história evolutiva e as interações que podem ter influenciado a extinção dos tigres-dentes-de-sabre. Esses felídeos formam um grupo cuja principal característica são os caninos alongados, o que sugere que seriam predadores especializados em caçar grandes animais.
“Uma das hipóteses com mais atenção na literatura era a de que o fim dos tigres-dentes-de-sabre poderia estar ligado à extinção da megafauna no final do Pleistoceno, que ocorreu entre 50 mil e 11 mil anos atrás. Esses animais de grande porte foram extintos por conta de mudanças climáticas e ações humanas e, com isso, os predadores teriam ficado sem suas principais presas”, conta João Nascimento, primeiro autor dos estudos, realizados durante doutorado no Instituto de Biologia (IB-Unicamp) com bolsa da Fapesp.
“No entanto, verificamos que o processo começou milhões de anos antes. Ao longo da história do grupo houve várias espécies diferentes de dentes-de-sabre. Nosso estudo mostra que as extinções de algumas delas, ao longo de toda a história do grupo, ocorreram geralmente nos momentos em que a diversidade de presas era menor”, explica.
No outro trabalho, publicado na revista Evolution, os autores observaram uma correlação no sentido oposto. O aumento da diversidade de predadores fez com que a diversidade de espécies de um grupo de herbívoros, os antilocaprídeos, declinasse.
No passado, os antilocaprídeos foram animais diversos na América do Norte, mas hoje são representados por uma só espécie vivente, o antílope-americano (Antilocapra americana), um dos herbívoros mais velozes do mundo. Uma das duas subfamílias, Merycodontinae, foi totalmente extinta cerca de 6 milhões de anos atrás. O evento coincide com o surgimento dos proboscídeos, grupo dos elefantes atuais, que competiam por ambientes florestais com os Merycodontinae.
A outra subfamília, Antilocaprinae, teve o início de seu declínio há cerca de 6 milhões de anos, coincidindo com o aumento da diversidade de felídeos. Entre eles está, por exemplo, o guepardo-americano (Miracinonyx), uma espécie que, assim como o guepardo africano, possuía adaptações para perseguição em alta velocidade.
Estudos de outros grupos de pesquisa sugerem que a predação por essa espécie seria uma das explicações evolutivas por trás da grande velocidade do antílope-americano. O estudo reforça essa hipótese ao mostrar que a diversidade de felídeos pode ter impactado a extinção de antilocaprídeos do passado.
Em trabalho anterior, os pesquisadores apontaram o gigantismo dos herbívoros na Península Ibérica como um fator que contribuiu para a extinção de predadores 15 milhões de anos atrás. Dessa vez, os estudos dizem respeito a territórios muito maiores, na escala continental.
“A grande contribuição desse conjunto de trabalhos é justamente trazer a noção de que a interação entre predadores e presas pode ter efeito nos grandes padrões evolutivos. Isso era debatido há décadas, mas não havia um conjunto de resultados realmente robusto dando suporte a essa hipótese”, afirma Mathias Pires, professor do IB-Unicamp, que orientou o estudo.
Macroevolução
Tanto os dois trabalhos atuais quanto o anterior só foram possíveis por causa do grande volume de dados disponíveis relativos a registros fósseis da América do Norte e da Eurásia, com informações como tamanho corporal e dieta. Os bancos de dados são disponibilizados on-line, gratuitamente, e permitem realizar uma série de estimativas.
Com os dados em mãos, os pesquisadores traçaram a história evolutiva de vários grupos de animais de grande porte. Com isso, puderam estimar seu surgimento e extinção prováveis e compreender quais conviveram no mesmo período e puderam interagir.
Os dentes-de-sabre, por exemplo, surgiram há 12 milhões de anos na América do Norte e 14 milhões de anos atrás na Eurásia, com pico de diversidade chegando a oito espécies convivendo entre si. A diversidade se manteve estável até 6 milhões de anos atrás, quando passou a declinar antes de se estabilizar em cinco espécies. Sua extinção ocorreu na época atual, o Holoceno, iniciado 11,7 mil anos atrás.
O período em que os dentes-de-sabre declinaram em diversidade coincide com mudanças que tornaram o clima mais árido, ampliando os ambientes abertos e, por consequência, aumentando o número de animais ruminantes que se alimentam das gramíneas que dominam essas paisagens. Ao mesmo tempo, animais que se alimentam de folhas perderam os ambientes florestais que proporcionavam sua dieta e refúgio.
“Nosso estudo não encontrou uma relação direta entre esse evento e a redução dos dentes-de-sabre, mas essas mudanças no ambiente tiveram um impacto indireto nas extinções das diferentes espécies de dentes-de-sabre, pela redução da disponibilidade de presas”, pondera Pires.
Um grupo prejudicado por essas mudanças foi o Merycodontinae. A subfamília de antilocaprídeos era folívora, mais dependente de florestas, e acabou extinta. Enquanto isso, os antilocaprídeos pastadores, a maioria dos Antilocaprinae de então, prosperaram por mais tempo, mas teriam entrado em declínio com o aumento na diversidade de felídeos.
“Estamos mostrando como o aumento de predadores pode reduzir a disponibilidade de presas, o que por sua vez reduz a abundância de predadores, e como isso pode se manifestar na escala evolutiva. É um alerta sobre como podemos estar alterando o futuro com as extinções que provocamos agora”, conclui Pires.