Nas vielas mal iluminadas das cidades medievais, uma multidão de roedores fazia a festa em meio ao lixo e ao esgoto a céu aberto. A vasta população de ratos se tornou símbolo da inépcia sanitária daqueles tempos e, para piorar, entrou para a história como protagonista de um capítulo trágico — o da peste bubônica, que dizimou cerca de um terço dos habitantes da Europa no século XIV. Eles foram vilões indiretos, já que a causadora do mal era uma bactéria transmitida por pulgas que justamente se alojavam nesses pequenos mamíferos. O mundo girou e ainda hoje, nos centros urbanos modernos, os roedores continuam a se proliferar junto à sujeira, de onde extraem alimento. Agora, seu sucesso como espécie vem sendo impulsionado por um fator que torna o mundo ao redor mais propício à sua existência, enquanto tanto estrago causa aos demais — a elevação dos termômetros resultante das aceleradas mudanças climáticas em marcha.
Que o calor é favorável aos roedores já era bem sabido. A novidade trazida por um recente estudo da Universidade de Richmond, nos Estados Unidos, está na rigorosa verificação científica da relação direta entre os dias mais abafados e o maior vigor dos ratos para sobreviver e procriar. O método dos pesquisadores foi analisar inspeções sanitárias e chamadas feitas por moradores para relatar a presença desses animais em dezesseis metrópoles americanas e europeias onde a temperatura tem escalado na última década. Conclusão: em 69% dos locais observados, de Amsterdã a Chicago, registrou-se um aumento expressivo desses seres que não raro assustam os humanos. Em Washington, o contingente avançou extraordinários 390%, enquanto em São Francisco cravou 300% e em Nova York, 162%. Por falta de dados, Londres e Paris, onde esses mamíferos já se infiltraram há tempos na paisagem, não entraram na lista, embora a infestação seja visível.

Menos ativos em climas demasiadamente frios, os roedores se dão bem em invernos amenos, uma vez que não precisam se proteger e, com isso, encontram mais oportunidade para ir atrás de alimento, explorar novos territórios e se reproduzir. Todo esse ambiente vem sendo potencializado pelo aquecimento global, mas, segundo o mesmo levantamento, esta não é a única variável que explica a explosão populacional dos ratos. A crescente concentração de habitantes nas cidades também ajuda a inflar o grupo, como consequência da enorme quantidade de resíduos disponíveis — comida de sobra para os roedores.
A infraestrutura urbana é outro componente que pesa a favor por lhes servir de abrigo. De acordo com as projeções, haverá cada vez mais solo fértil para crescerem e aparecerem: o Banco Mundial prevê que as áreas urbanizadas dobrem de extensão na primeira metade do século XXI. O que já é um pesadelo para boa parte da humanidade — um planeta cada vez mais quente e com metrópoles apinhadas — soa como uma boa ópera aos ouvidos da turma roedora. “A previsão é de que tanto o aquecimento global quanto a expansão dos grandes centros sigam a toda, o que inevitavelmente contribuirá para a infestação de ratos”, afirmou a VEJA o epidemiologista Jonathan Richardson, autor do estudo da Universidade de Richmond.

Manter esses pequenos mamíferos em distância segura dos seres humanos é medida altamente recomendada pelos expoentes da saúde pública mundial, visto que eles atuam como vetores de mais de 35 doenças — de leptospirose e tifo a variações agressivas de salmonelose. Os especialistas lembram ainda que, ao contrário do carismático ratinho Remy da animação Ratatouille, da Pixar, que se aventura pela gastronomia francesa guiado por um paladar sofisticado, a espécie na vida real não revela nenhuma preocupação com a procedência do que ingere. Seu apetite voraz está por trás de estoques inteiros de alimentos corroídos e devorados, gerando milionários prejuízos ao agronegócio e ao comércio. Com dentes resistentes, capazes de traçar até concreto e aço, eles ainda contribuem para a destruição de fiações elétricas, comprometendo encanamentos e elevando o risco de incêndios subterrâneos.
Controlar essa população em ascensão é tarefa cada vez mais difícil e cara. Globalmente, os esforços dedicados à guerra contra os ratos custam cerca de 500 milhões de dólares por ano — montante voltado para barrar sua explosão, e não os eliminar, uma vez que têm seu papel na cadeia alimentar. A cidade de Nova York chegou a criar um cargo curioso para atacar o problema, o de diretor de mitigação de roedores, que os locais apelidaram de czar dos ratos. Só que esses mamíferos parecem estar sempre um passo adiante. A tática mais tradicional para frear sua multiplicação continua a ser o uso de pesticidas e armadilhas, porém nem sempre funcionam. “Os ratos são notavelmente adaptáveis e muito inteligentes, daí desenvolveram rápida resistência a vários métodos”, enfatiza o especialista Michael Parsons, da Universidade Fordham, nos Estados Unidos. Por isso, a turma da Universidade de Richmond sugere às autoridades parar de caçar os roedores e se concentrar em tornar o ambiente urbano menos atraente para eles, cuidando melhor dos resíduos e evitando o acúmulo de entulho nas ruas. Quanto aos termômetros, é preciso acelerar o passo para que não escalem mais ainda de patamar — medida que extrapola, e muito, a questão dos pequenos mamíferos que se espalham pelo globo.
Publicado em VEJA de 20 de junho de 2025, edição nº 2949