counter Rage bait: por que está todo mundo falando em “isca de raiva”? – Forsething

Rage bait: por que está todo mundo falando em “isca de raiva”?

Se eu começasse este texto dizendo que alguém que você ama merecia ser fuzilado, você provavelmente revidaria. No mínimo, mostraria o absurdo da situação para pessoas conhecidas ou talvez publicasse algo a respeito numa rede social expondo o caso. Mais gente, ao ser impactada por esse conteúdo, entraria na conversa – uns me xingando, outros concordando comigo – e assim aquela barbaridade atingiria mais e mais gente. Não sem antes ser sinalizada como relevante por algoritmos que moderam publicações nas redes sociais e que fariam o ataque bizarro chegar ainda a outros usuários. Uma bola de neve de ódio, por assim dizer.

Que fique claro, não acho que NINGUÉM mereça ser fuzilado. Usei o exemplo acima para ilustrar o que tem feito a expressão RAGE BAIT circular com frequência nos últimos tempos, especificamente desde ontem, quando foi escolhida como “palavra” do ano por uma equipe de linguistas e lexicógrafos da Oxford University Press, instituição britânica responsável pelo famoso dicionário homônimo.

Rage Bait significa literalmente “isca de raiva”. Embora a expressão tenha sido escolhida como representativa do ano numa votação com mais de 30 mil pessoas, existe há mais de duas décadas. Primeiro em contextos offline, depois numa reencarnação digital que nunca deixou de estar entre nós. E causa estragos nas plataformas com cada vez mais força.

Muitas figuras com grande visibilidade nos dias de hoje construíram fama e fortuna na força do ódio alheio. Não cabe citar nomes aqui, mesmo porque os que me veem à mente certamente são diferentes dos seus, que também não seriam iguais aos do colega de trabalho e do vizinho. A internet cria realidades particulares que a gente talvez nem se dê conta que existem, afinal.

Sempre conto aos meus alunos sobre um livro chamado Contágio, do professor Jonah Berger, da Wharton, escola de negócios da Universidade da Pensilvânia. Ele e uma equipe tentaram entender o que havia em comum entre as notícias mais compartilhadas pelos leitores do jornal New York Times e perceberam um denominador comum: emoções de alta intensidade. Algumas eram boas, como o encanto. Outras, no entanto, iam na direção contrária. E, sim, já deu para entender que estou falando do ódio que determinadas publicações despertam na gente.

Continua após a publicidade

Outra autora, a brasileira Leticia Cesarino, ensina no livro O Mundo do Avesso que os algoritmos usam a humanidade como uma espécie de campo de testes. Li isso há três anos e nunca saiu da minha cabeça. Em linhas gerais, ela conta que é a primeira vez na história em que uma tecnologia não é usada para melhorar as pessoas, mas usa as pessoas para se aprimorar. Para as plataformas, nosso estado de espírito não importa desde que estejamos lá fornecendo dados, likes, comentários, reações.

Não é só nossa atenção que é direcionada para venda de publicidade, é a existência da espécie inteira transformada em matéria-prima, sendo medida, convertida em informações que podem ser (e provavelmente serão) usadas contra nós mesmos, como detectou outra pesquisadora, a norte-americana Shoshana Zuboff, num livro espetacular chamado A Era do Capitalismo de Vigilância. 

Tudo que aparece na sua tela numa rede social foi escolhido para você por um agente não humano. É disso que a gente fala quando menciona algoritmos. De máquinas programadas para otimizar ao máximo a permanência naquele ambiente. Elas se alimentam de posts que mobilizam as pessoas – às vezes lindos e edificantes, porém muitas vezes catalisadores do pior que há em nós.

Continua após a publicidade

Quando se dá conta, você já compartilhou na sua rede. É claro, com o tempo estamos um pouco menos bobos. Mas bem pouco, arrisco. Tanto que olha aí a consagração do rage bait, cujo uso triplicou nos últimos doze meses! A importância de eleições como essa de Oxford é servir como um barômetro dos nossos tempos, e se a gente fala do que o coração está cheio (como eu ouvia sempre nos meus tempos de seminarista), a multiplicação das iscas de raiva parece um péssimo sintoma.

Que tal aproveitar que jogaram na nossa cara essa manipulação algorítmica e mudar nossos hábitos? Ignorar conteúdos criados para fazer nossa raiva virar dinheiro, sabe? Não digo isso num tom “paz e amor”, tá? Mesmo porque esse tom serviria como um rage bait até para mim mesmo, juro. É que já faz anos que a gente tenta tornar a internet menos terrível, e parece que só vai ladeira abaixo.

Publico aqui na coluna diariamente iniciativas relacionadas a inteligência artificial, e acho MESMO que a tecnologia pode melhorar muito o nosso mundo. Justamente por isso, defendo que o poder delas sobre as nossas vidas seja debatido o mais depressa possível. Talvez esse post aqui não chegue a muita gente, porque ele não contém ódio nem iscas óbvias de engajamento. Reflexões comedidas não são o caminho para a viralização, aprendi ao longo de toda a minha vida de internet. Mas eu acredito que, um texto por vez, pontos de vista equilibrados podem fazer diferença no mundo.

Publicidade

About admin