No coração de Alba, no Piemonte, em um propriedade que tem como parte de suas estrutura colunas romanas com 2 000 anos de história, encontra-se uma das vinícolas mais emblemáticas da Itália: a Pio Cesare. Fundada em 1881, ela se destaca pela tradição entre as 300 casas que produzem no país o festejado “rei dos vinhos”, o Barolo. Outra singularidade da Pio Cesare é o fato dela ser comandada por uma jovem empresária. Federica Boffa, de 28 anos, pertence à quinta geração da família responsável pela produção. Mais jovem mulher à frente de uma das vinícolas mais tradicionais do mundo, ela cresceu entre barricas, colheitas e viagens de exportação.
Federica assumiu os negócios depois da morte de seu pai, Pio Boffa, vítima de Covid, em 2021. Apesar de reconhecer que o mundo dos vinhos ainda é um universo bastante masculino, principalmente na Itália, ela acredita que o espaço das mulheres vem crescendo. “Temos sensibilidade para aromas, para sabores, e também para a visão comercial. Sinto que, no vinho, as mulheres se apoiam mais do que em outros setores”, contou ela à coluna AL VINO.
A juventude e o fato de ser mulher não a intimidam. Federica conta que, no dia a dia, o maior desafio é manter a tradição da família, que consiste em fazer um Barolo equilibrado, altamente gastronômico e elegante. A filosofia da Pio Cesare luta para resistir às modas e permanecer fiel à própria identidade, marcada por um estilo clássico de Barolo. “Já houve quem exagerasse no uso de barricas ou seguisse tendências de vinhos naturais, baixos em álcool, ou até começasse a investir em espumantes. Nós, não. A chave do nosso sucesso foi sempre ser Pio Cesare — e não outra coisa”, afirmou.
Segundo o consórcio que dita as rígidas regras dessa produção, um autêntico Barolo é feito 100% com a uva Nebbiolo e deve envelhecer no mínimo 38 meses, dentre os quais 18 em barricas de carvalho. Só pode chegar ao mercado a partir do 1º de janeiro do quarto ano após a colheita. O Barolo reserva, por exemplo, deve envelhecer 62 meses (incluindo os 18 meses em carvalho), e só pode chegar ao mercado cinco anos após a safra. Há também uma determinação que delimita especificamente o perímetro de onde a uva pode ser plantada, para ser certificada.
As mudanças climáticas complicaram bastante o esforço para atender essas normas, que foram criadas em outra época, para outra realidade — e essa é uma das brigas atuais de Federica. “Quando meu avô fazia vinho, a colheita do Nebbiolo acontecia em novembro. Hoje, colhemos em setembro. Já tivemos verões de 45°C. Tudo mudou”, disse. As regras do consórcio Barolo e Barbaresco proíbem práticas como a irrigação e limitam altitudes de plantio. Nos tempos atuais, nos quais temperaturas acima de 40 graus se tornaram frequentes, para manter o frescor e acidez típicos deste estilo de vinho é preciso cultivar as uvas em lugares cada vez mais altos.
O problema é que , quanto mais alto de planta, mais essa plantação pode se afastar das regras do Barolo. “Em 2021 cultivamos Nebbiolo em uma área chamada Alta Langa, nas colinas, na vila de Cissone. Temos 10 hectares de terra por lá, mas no momento plantamos apenas 1,5 hectare porque, segundo o consórcio, não se pode fazer Barolo com o que se colhe ali. O vinhos das uvas de lá chama-se Langhe Nebbiolo”, explicou. “Entendo que há 600 produtores naquela região, que fazem vinhos com diferentes apelos, alguns mais industriais com maiores quantidade, outros mais artesanais, e a regra deve ser para todos, mas fazer vinhos diante do desafio climático, precisa ser uma questão. Isso é muito mais importante do que ficar discutindo se os produtores podem ou não usar rosca ou rolha para vedar seus vinhos”, reclamou. “As mudanças climáticas são a grande ameaça ao futuro do vinho no Piemonte.”
White revolucion
Como ocorria nas gestões de seu pai e de seu avô, Federica não tem ao seu lado um diretor comercial, nem um executivo responsável pela exportação do produto. Ela faz questão de manter a administração familiar e direta, o que a obriga a colocar o pé estrada na maior parte do tempo, ou melhor, em voos internacionais, por cerca de 200 dias por ano. Isso é necessário para visitar 55 países para onde 70% da produção de 500.000 garrafas, distribuídas entre 16 rótulos, são exportadas. “Quando mostramos que atrás do rótulo existe uma família, isso faz diferença. É um vínculo de confiança com clientes e importadores”, explicou-me Federica durante nosso encontro recente em São Paulo na Enoteca Decanter, empresa que traz os rótulos para o Brasil.
Entre os principais compradores de Pio Cesare estão os Estados Unidos, Itália, Canadá, Brasil, Reino Unido e países do norte da Europa. Como a última importação para o território americano aconteceu antes de agosto, não foram aplicadas a esse lote as tarifas de 15% impostas por Trump aos produtores italianos. Daqui em diante, graças a um bom relacionamento com o importador americano, Federica e o parceiro dos Estados Unidos concordaram em dividir as taxas e assim manter o novaiorquinos e californianos abastecidos de Barolos e Barbarescos sem uma alta exagerada nos preços. “O Brasil, historicamente, é um importante mercado para nós, mas, após a Covid, o bloco de países asiáticos tem se tornado cada vez mais importante”, afirmou.
Embora reconhecida pelos tintos, a Pio Cesare tem longa história com os vinhos brancos. Pio Boffa, pai de Federica, foi um pioneiro a plantar Chardonnay no Piemonte, nos anos 1970. Eles também cultivam há mais de duas décadas Sauvignon Blanc e, em 2018, criaram um vinho dessa uva na versão “in purezza“, como os italianos chamam os varietais, rótulos feitos de uma única uva. Mas o projeto mais emocionante e que faz os olhos de Federica brilhar é recente: o Timorasso, uva piemontesa quase extinta, que tem grande estrutura e potencial de envelhecimento.
O primeiro cultivo aconteceu em 2021, logo após a morte do patriarca. A estreia foi com a safra 2023, que produziu apenas 4 000 garrafas e mostrou imenso potencial para um branco de guarda de alta gama. As próximas safras não serão suficientes para mais do que 10 000 garrafas, o que tornará o Timorasso certamente um verdadeiro tesouro para quem busca raridades. “Esse projeto é especial porque foi o último sonho do meu pai e, ao mesmo tempo, o primeiro grande desafio que assumi sozinha. Conseguimos dar ao Timorasso o estilo Pio Cesare, mas respeitando sua identidade”, contou Federica.
A hora da degustação
Entre os dezesseis rótulos produzidos atualmente pela Pio Cesare, Federica não consegue apontar um preferido, mas diz que tem um vinho para cada momento e companhia. Tive a oportunidade de provar três produtos disponíveis no mercado brasileiro, com um sabor extra na degustação: a condução leve e gentil da jovem senhora do Piemonte.

Eu e Federica começamos com um Sauvignon Blanc, um Langue D.O.C. que é menos aromático do que se espera, só que mais elegante e longevo, ótimo para quem gosta de brancos para acompanhar um jantar. “É mais gastronômico, menos aromático, com potencial de guarda. Ideal para surpreender quem conhece a casta apenas pelo estilo de Friuli ou Trentino”, explicou-me ela. Seguimos com um Barbera d’Alba (R$ 430). Segundo Federica, ele é perfeito para os dias de semana, pois é versátil e gastronômico. Acompanha da pizza ao risoto.
O Barolo (R$1.483) fica reservado para grandes celebrações e encontros especiais, ocasiões que pedem solenidade. Ainda bebê, Federica contou que foi apresentada a ele por seu pai, nos festejos do batizado dela na igreja. Pio Boffa colocou o dedo na taça e deixou que a filha sorvesse uma pequena gota do precioso líquido. Atitude bastante reprovável aos olhos de hoje, mas, convenhamos, é um pecado digno de absolvição: não é de dar inveja essa história de quem já foi batizada na igreja com um Barolo?
Degustar essas preciosidades com Federica representou uma experiência que reafirmou o quanto um vinho é muito mais do que uma simples bebida: é herança, é experiência, é encontro. Conversar com ela foi um convite a experimentar o vinho como se vive um momento — com leveza, intensidade e memória.
Salute!