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Quando prevenir e remediar andam juntos

Entre discursos mais ou menos catastróficos sobre a crise climática, há um fato inegável: eventos extremos – como incêndios florestais, chuvas devastadoras ou ondas de calor – estão se tornando cada vez mais frequentes, intensos e custosos. No Brasil, apenas no último ano, foram registrados mais de 1.690 desastres naturais, uma média de quatro por dia, segundo dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN).

Mas desastres não são uma novidade na história. Pandemias, enchentes, secas, e terremotos há séculos testam os limites da nossa capacidade de resposta. Em 1918, a chamada “gripe espanhola” matou, em menos de um ano, 100 milhões de pessoas — o dobro do número de vítimas da Primeira Guerra Mundial. No Brasil, a “Grande Seca” nordestina de 1877 a 1879 tirou a vida de meio milhão de pessoas e colapsou as finanças do Império. Já o terremoto de Lisboa, em 1755, destruiu 85% da cidade e consumiu o equivalente a 30% do PIB português da época.

Além da tragédia humana, esses episódios históricos lembram que os desastres — climáticos ou não — são também grandes problemas econômicos. No Brasil, a resposta tradicional a crises e desastres tem sido o aumento da dívida pública: emissão de títulos, uso da Conta Única do Tesouro, cortes em despesas discricionárias e de pessoal. A pandemia de Covid-19, por exemplo, custou cerca de R$ 524 bilhões em gastos emergenciais e levou à edição de normas constitucionais voltadas à sustentabilidade da dívida — uma tentativa de conciliar o necessário gasto social com o equilíbrio intergeracional das contas públicas.

Mais recentemente, o pior desastre climático da história do Rio Grande do Sul, em 2024, devastou a economia do Estado: destruiu rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e moradias. Mesmo diante do anunciado “`Plano Marshall” de reconstrução, a projeção é que o Estado do Rio Grande do Sul ainda leve muitos anos para se recuperar. A tragédia revelou não apenas a força destrutiva das mudanças climáticas, mas também a fragilidade da nossa arquitetura econômica diante de riscos extremos.

O chamado insurance protection gap – ou lacuna de proteção – mede o quanto da perda econômica causada por um evento extremo não está coberta por seguros — ou seja, o “buraco” de proteção financeira na sociedade diante de riscos catastróficos. E o buraco é enorme — tanto no Brasil quanto no resto do mundo.

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Em 2024, o impacto dos desastres naturais para a economia global foi de US$ 368 bilhões, mas apenas 40% (cerca de US$ 145 bilhões) desse total tinha cobertura de seguros. Isso significa que 60% das perdas recaíram diretamente sobre famílias, empresas e governos.

Na tragédia do Rio Grande do Sul, a situação foi ainda mais dramática: segundo a SUSEP, a lacuna de proteção chegou a 94% —a imensa maioria das perdas econômicas não tinha cobertura securitária.

Essa lacuna resulta de múltiplos fatores — estruturais, regulatórios e até mesmo culturais. No Brasil, a cultura do seguro ainda é bastante limitada e os produtos voltados a riscos climáticos ainda são incipientes. Além disso, a própria natureza do fenômeno climático dificulta sua mensuração – de fato, o grau de incerteza quanto à ocorrência e à magnitude dos desastres torna ainda difícil precificar riscos climáticos com precisão. Calcular o valor dos seguros diante das mudanças climáticas é hoje um dos maiores desafios para o setor segurador.

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Apesar dessas dificuldades, o seguro pode — e deve — assumir um papel mais ativo e preventivo na resposta à crise climática. Tradicionalmente, o seguro é visto como um instrumento de recuperação, ex post por natureza – um pagamento após uma tragédia. Mas quando bem desenhado, o seguro pode ser muito mais do que um mecanismo de indenização.

Citamos três funções alternativas para esse instrumento – ainda pouco exploradas na literatura brasileira- que mostram como o seguro pode atuar de forma ativa no enfrentamento da crise climática.

Em primeiro lugar, o seguro pode ser um instrumento para a adaptação climática. Estudo recente da Universidade de Columbia mostrou como no caso dos incêndios florestais na Califórnia, seguradoras podem atuar na fase de prevenção oferecendo descontos em prêmios de seguros residenciais para construções mais resistentes ao fogo ou com manejo adequado da vegetação no entorno das casas. O seguro, aqui, estimula comportamentos adaptativos e reduz riscos antes que eles se materializem.

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O seguro pode ser também um motor para a transição energética. No Reino Unido, todas as propriedades devem possuir um Certificado de Eficiência Energética (EPC). Imóveis com classificação “A” ou “B” podem ter redução nos prêmios de seguro, enquanto os menos eficientes pagam mais. O seguro, portanto, cria incentivos econômicos concretos para a descarbonização e a eficiência energética do setor residencial.

Por fim, o seguro pode ser também um instrumento de justiça climática. Na África, iniciativas como a African Risk Capacity (ARC) utiliza seguros paramétricos indexados por satélite, —que liberam recursos automaticamente quando certos índices climáticos são atingidos — por exemplo, níveis críticos de seca ou excesso de chuvas. O seguro aqui não repara o desastre depois que ele ocorre; ele atua antes, garantindo liquidez imediata a comunidades ou a governos, e reduzindo o risco de que um evento climático extremo se transforme em catástrofe humanitária.

Programas como o Kenya Livestock Insurance Programme (KLIP) e o Pacific Insurance and Climate Adaptation Programme (PICAP) seguem a mesma lógica: o seguro antecipa recursos e permite a adoção de medidas emergenciais, antes mesmo da ocorrência de um desastre maior. Diferentemente dos socorros financeiros e do endividamento público, que chegam depois da tragédia, o seguro, quando bem desenhado, pode atuar antes, reduzindo vulnerabilidades e incentivando comportamentos adaptativos.

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Essas experiências mostram que o seguro não deve ser visto apenas como um mecanismo de indenização, mas como parte essencial da política climática. Afinal, em um mundo onde eventos extremos se tornam cada vez mais frequentes, prevenir e remediar precisam — e podem — caminhar juntos.

Vanessa Reis é sócia do Medina Osório Advogados, mestre em Direito da Administração Pública, doutoranda em Direito Financeiro e Econômico Global pela Universidade de Lisboa, professora de Direito Financeiro e Procuradora do Estado.

Nina Laporte Bomfim – Mestranda em Direito Público pela UERJ. Pós-graduada em Análise Econômica do Direito e em Direitos Fundamentais pela Universidade Complutense de Madrid. Extensão em Law and Economics pela Harvard Law School. Professora convidada da Escola Superior de Advocacia Pública (ESAP). Advogada.

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