Imagine descobrir que você tem câncer. Não um câncer em estágio inicial, tratável com cirurgia e acompanhamento. Mas um câncer avançado, que exige tratamento imediato com medicamentos. Agora imagine que, mesmo existindo um tratamento eficaz, capaz de controlar a doença e dar tempo de vida com qualidade, ele simplesmente não está disponível. Não porque não foi aprovado, mas porque o Ministério da Saúde ainda não comprou, não entregou, não garantiu o acesso.
Essa é a realidade de milhares de pacientes com câncer no Brasil. Sim, infelizmente, a maioria dos diagnósticos no país ainda ocorre “tarde” – e por inúmeras razões que merecem outro artigo. Segundo dados do Painel de Oncologia do Ministério da Saúde, em 2023, 57% dos pacientes iniciaram o primeiro tratamento com a doença em estágio avançado ou metastático.
No caso de cânceres como pulmão, fígado e cabeça e pescoço, esse número é ainda mais alarmante: mais de 85% dos casos são diagnosticados nos estágios III ou IV, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA).
Nessas situações, espera-se um cuidado integral e ágil, baseado no acesso a tratamentos sistêmicos com medicamentos eficazes. Afinal, oferecer tempo de vida com qualidade, controlando a doença é o objetivo — e o tempo, nesses casos, não pode ser desperdiçado.
Hoje, temos medicamentos certos já incorporados ao SUS. Já aprovados pelo Ministério da Saúde. Mas eles ainda não chegam a quem mais precisa. A morosidade do sistema e a falta de compromisso com a implementação prática das políticas públicas geram uma realidade inaceitável: pacientes esperando por algo que já é um direito.
E o problema é grave e específico: quando olhamos para os medicamentos oncológicos incorporados ao SUS nos últimos 12 anos, encontramos 23 medicamentos listados oficialmente. Desses, 19 são indicados para pacientes com câncer em estágio avançado ou metastático .
Entre eles, estão medicamentos para câncer de pulmão (como o Gefitinibe, o Durvalumabe e o Brigatinibe), para câncer de mama (inibidores de ciclina e trastuzumab entansina) e para câncer de ovário com mutação BRCA (Olaparibe), entre outros.
A maioria desses medicamentos (19 de 23) já ultrapassou em muito o prazo legal de 180 dias para serem disponibilizados para os pacientes do SUS . O caso dos inibidores de ciclina é simbólico: incorporados em dezembro de 2021 , ainda não estão disponíveis em 2025 — mais de 1000 dias de atraso.
Essa falta de disponibilidade vem acontecendo para quase todas as medicações oncológicas incorporadas ao SUS, por falhas estruturais no sistema. Em estudo feito pelo Oncoguia, olhamos para os protocolos de tratamento dos cânceres mais incidentes (mama, próstata, pulmão e colorretal) e verificamos que nenhuma das diretrizes do Ministério da Saúde sobre o tratamento para esses tipos de câncer são seguidas em sua totalidade pelos hospitais oncológicos participantes do estudo (64) .
Quando olhamos de forma mais específica, o caso é ainda mais sério. Para o câncer de pulmão, por exemplo, apenas 2 hospitais disponibilizam todas as medicações que foram incorporadas oficialmente e 22 deles não disponibilizam nenhuma das 4 drogas que foram aprovadas para a doença nos últimos 12 anos.
Essa desconexão entre decisão e ação, entre direito e realidade, é uma forma sofisticada de negação de cuidado.
Sabemos que existem desigualdades históricas entre o que é oferecido pela saúde suplementar e pelo SUS e seguimos batalhando muito para que essa diferença diminua. Mas, neste momento, não estamos pedindo o impossível. Estamos falando de tratamentos que já passaram por todas as etapas legais e técnicas de aprovação, e que na prática poderiam estar dando mais vida para pacientes que convivem com o câncer, que pode sim ser controlado.
No fim das contas, não estamos falando de remédios, protocolos ou prazos. Estamos falando de pessoas. De mães, pais, filhas, amigos — que merecem ter suas histórias continuadas, não interrompidas por um sistema que parou no meio do caminho.
* Luciana Holtz é psico-oncologista e presidente do Instituto Oncoguia