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Pseudociência culposa: os ‘heróis’ bem-intencionados que propagam falsas promessas na saúde

Em minha vivência na comunicação científica em saúde encontro com frequência um desfile interminável de “picaretagens”. Mais recentemente, adotei de maneira informal os termos culposo e doloso, inspirado nos conceitos jurídicos de dolo e culpa, para tentar dar nome a dois personagens que vejo de forma recorrente no universo das práticas pseudocientíficas.

O picareta doloso é a figura mais fácil de identificar (e desprezar). Ele sabe o que faz, e faz porque tem a intenção de lucrar e forjar um status de guru da saúde. Apresenta-se como o “rebelde iluminado”, um “mestre exilado por denunciar o sistema” que vende “curas milagrosas” e protocolos com a plena consciência de que são ineficazes.

Contudo, este artigo não é sobre ele. É sobre a figura que considero mais trágica e complexa: o picareta culposo. Imagine um bombeiro que, acreditando estar apagando incêndios, na verdade os alimenta com combustível. Essa é a tragédia do picareta culposo.

O culposo é aquele que “engana sem saber que está enganando”. Acredita estar ajudando. A característica fundamental do picareta culposo é sua sinceridade. Não está apenas interessado no lucro (embora trabalhe muito para obtê-lo); está interessado em validar sua visão de mundo. Em sua origem, também foi vítima, capturado por uma engrenagem de charlatanismo que agora, inadvertidamente, ajuda a manter funcionando. O picareta culposo diz ter se apaixonado pela Ciência, mas na verdade apaixonou-se por uma promessa vazia que tenta simular a Ciência.

Prisioneiro de si

Um futuro picareta culposo raramente se dedica a buscar práticas pseudocientíficas. Acaba sendo seduzido por elas em momentos de vulnerabilidade, como uma doença pessoal, a frustração com limitações da sua prática convencional, lacunas de formação ou dificuldades financeiras. Essas questões o tornam mais receptivo a narrativas que oferecem explicações simples para complexidades com que o sistema de saúde convencional tem dificuldade em lidar.

O picareta culposo passa então a se armar com críticas a este sistema, sentindo-se autorizado a abraçar alternativas que se apresentem como contestadoras. Com ar professoral, costuma insistir em frases como: “A ciência não é neutra” e “A indústria farmacêutica não é confiável” como se fossem grandes revelações, ignorando que nós, que trabalhamos com Ciência, levamos esses fatores em consideração há tempos.

São afirmações que não chegam a estar erradas. O erro está no salto aparentemente lógico que vem depois: a transformação de críticas legítimas em carta branca para a pseudociência. Uma vez fisgado pela narrativa inicial, o picareta culposo embarca em uma jornada de “aprendizado” que envolve considerável investimento de tempo, dinheiro e, principalmente, identidade. Compra livros, faz cursos, participa de workshops e gradualmente constrói uma nova visão de mundo, em que se vê como especialista naquilo que propaga, amparado por uma rede de pessoas que pensam como ele.

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O viés de confirmação o leva a continuar buscando e valorizando apenas informações favoráveis a suas novas crenças, enquanto ignora ou desqualifica evidências contrárias (mesmo que robustas). Estudos que questionam suas práticas são automaticamente rotulados como “financiados pela indústria farmacêutica” ou “metodologicamente falhos”, enquanto qualquer relato anedótico favorável é aceito como “prova irrefutável”. Com o tempo, o picareta culposo desenvolve uma confiança desproporcional à sua expertise real e à própria realidade em saúde.

Quando está suficientemente investido na sua prática, o “viés de custo irrecuperável” (a tendência de continuar investindo em algo simplesmente porque já investimos muito) é o principal responsável por manter essa roda girando, mesmo em uma direção contrária às evidências.

Considere o exemplo fictício de João, um pediatra que investiu R$ 20.000 em uma pós-graduação avançada em Astropediatrosofia quântica (inventei esse nome, mas você pode substituir pela pseudociência da sua preferência). Dedicou dois anos de fins de semana a um treinamento, adaptou sua clínica para acomodar a nova prática e construiu uma identidade profissional (especialmente nas redes sociais) em torno desse sistema. Quando confrontado com exigências de evidências ou com evidências robustas de que a prática é ineficaz, João enfrenta uma escolha dolorosa: admitir que foi enganado (e que jogou fora dinheiro, tempo e parte de sua identidade profissional), ou se fechar ainda mais na sua prática, ignorando tudo isso.

O viés do custo irrecuperável torna a primeira opção psicologicamente pouco atrativa, pois requer uma grande reestruturação de sua identidade pessoal e profissional.

Além do custo financeiro e identitário, há um custo social. O picareta culposo geralmente se integra a uma comunidade de praticantes similares, desenvolve amizades baseadas em crenças e valores compartilhados e constrói uma rede de suporte que valida suas práticas. Nesse sentido, questionar a eficácia da Astropediatrosofia traz o risco de isolá-lo dessas comunidades e forçá-lo a enfrentar o julgamento de pares que, ao longo do tempo, tornaram-se amigos ou fãs.

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O problema do sucesso aparente

Para reduzir o desconforto que as evidências científicas contrárias às suas crenças provocam, o picareta culposo desenvolve mecanismos de defesa. Um deles é a desqualificação da fonte: “Esse estudo foi financiado pela indústria farmacêutica”, “Esse pesquisador está vendido para o sistema”, “Essa revista científica tem viés contra medicinas alternativas”.

Outro mecanismo é a relativização das evidências: “A ciência já mudou de opinião tantas vezes”, argumenta o picareta culposo, “como podemos ter certeza de que não vai mudar novamente?”. Há também a criação de critérios especiais: “Minha prática funciona de forma diferente”, “não pode ser medida pelos métodos científicos convencionais”.

Mas nada disso serve tão bem ao picareta culposo quanto acreditar ter presenciado (ou, principalmente, causado) a melhora de saúde de pacientes. Esses “sucessos” se tornam uma espécie distorcida de “base empírica” de sua convicção, criando uma narrativa pessoal de eficácia que é extremamente resistente. Afinal, como questionar o que se viu com os próprios olhos? Para o picareta culposo, trata-se de uma causalidade linear: “fiz a intervenção, logo o paciente melhorou por causa disso”.

A regressão à média é um fenômeno estatístico pelo qual valores extremos tendem naturalmente a se aproximar da média ao longo do tempo. Em termos práticos, isso significa que pessoas geralmente buscam tratamento alternativo nos momentos de pico de seus sintomas. Estatisticamente, é provável que se sintam melhor nas semanas seguintes, independentemente de qualquer intervenção. O picareta culposo, não familiarizado com este conceito, atribui a melhora natural ao seu tratamento.

A história natural das doenças também explica muitos desses “milagres”. Diversas condições são autolimitadas e tendem a melhorar espontaneamente com o tempo. Resfriados, dores musculares leves, episódios de ansiedade e até mesmo algumas condições mais sérias podem apresentar remissões espontâneas. O picareta culposo, intervindo durante esses processos naturais de recuperação, sente-se um “herói” por mero acaso.

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O efeito Hawthorne adiciona outra camada de complexidade. Originalmente descrito em estudos de produtividade industrial nos anos 1920, este fenômeno mostra que pessoas podem melhorar simplesmente porque sabem que estão sendo observadas. Na prática clínica, o paciente que percebe um interesse genuíno, consultas longas e cuidado individualizado tende a relatar melhora também por sentir-se observado e valorizado. Parte dessa aparente melhora pode vir de uma vontade (muitas vezes não consciente) de agradar o observador (que neste caso assume também figura de cuidador). O paciente pode relatar sintomas mais brandos para corresponder ao cuidado recebido, ou ajustar hábitos e posturas para “performar” bem diante do terapeuta. São nuances sutis de comportamento que reforçam a impressão de eficácia, mesmo quando nada, de fato, mudou na evolução natural da doença.

Tudo isso se mistura com a expectativa do paciente em melhorar e sua tendência a atribuir essa melhora à intervenção proposta, que acaba sendo coloquialmente chamada de “efeito placebo”. Assim, quando um paciente realmente se sente melhor após um tratamento inerte, o picareta culposo tem uma “prova” aparentemente incontestável de que sua prática funciona. Como pode estar errado se o paciente melhorou?

A Tragédia da Boa Intenção

Talvez o aspecto mais frustrante do fenômeno do picareta culposo seja sua resistência a evidências contrárias. Apresentar estudos científicos rigorosos que refutam suas práticas frequentemente produz o efeito contrário ao desejado (um fenômeno conhecido como backfire effect), em que evidências contraditórias fortalecem as crenças originais, em vez de enfraquecê-las.

Isso acontece porque, para o picareta culposo, o questionamento da validade científica de seus métodos não é parte de uma discussão intelectual, mas ataque pessoal. Sua identidade encontra-se tão entrelaçada à prática que criticar uma é atacar a outra. “Por que você está tão interessado em desacreditar algo que ajuda pessoas?” é uma pergunta retórica comum, que transforma o crítico racional em vilão e o praticante pseudocientífico em mártir.

Mas, para mim, o aspecto mais melancólico do picareta culposo é justamente a sinceridade. Diferente do doloso, que cinicamente explora a vulnerabilidade alheia, o culposo acredita estar fazendo o bem. Ele sacrifica tempo com a família para atender pacientes, investe recursos pessoais em sua “educação” continuada e perde o sono preocupado com casos difíceis. A dedicação é real, embora a eficácia seja ilusória.

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Essa boa intenção, no entanto, não o absolve das consequências de suas ações. Pacientes podem atrasar tratamentos eficazes enquanto tentam terapias inúteis. Recursos financeiros limitados são desperdiçados em práticas sem benefício comprovado. Criam-se falsas esperanças.

Além disso, mais sutilmente, o picareta culposo acaba contribuindo para a erosão da confiança na ciência tanto quanto o doloso. Ao apresentar sua abordagem como equivalente ou superior aos tratamentos convencionais, perpetua uma falsa equivalência que pode levar a decisões mal-informadas sobre saúde e gerar a falsa impressão de falta de consenso científico a respeito de tratamentos bem estabelecidos.

Considerações Finais

Reconhecer a inocência do picareta culposo não significa minimizar seus efeitos nocivos. A compreensão da sua “gênese” deve servir não para justificar seus erros, mas para desenvolver estratégias mais eficazes de prevenção e intervenção.

O fenômeno do picareta culposo também nos oferece um olhar sobre as deficiências do sistema de saúde convencional. Se pessoas bem-intencionadas são constantemente atraídas para práticas alternativas, talvez seja porque o sistema convencional esteja de alguma forma falhando na formação de profissionais e em oferecer coisas que os pacientes valorizam: tempo, atenção e cuidado humanizado.

No fim, a figura do picareta culposo, em sua trágica sinceridade, nos mostra tanto o melhor quanto o pior da natureza humana: a vontade e o desejo de cuidar e ajudar, mas também a propensão ao autoengano e a resistência a reconhecer erros.

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André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros “Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades” e “50 Casos Clínicos em Farmacologia” (Sanar), “Porque sim não é resposta!” (EdUFABC), “Tarot Cético: Cartomancia Racional” (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?…e o que não é. (Editora Contexto).

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