A sobrevivência da monarquia britânica depende do delicado tecido das percepções. Sendo o sistema baseado, intrinsicamente, na desigualdade que dá a integrantes de uma família real o direito de serem chefes de Estado e desfrutarem de privilégios incomparáveis, eles precisam mostrar que prestam um serviço relevante ao país. É essa percepção que o caso de Andrew, o irmão caído em desgraça do rei por causa da ligação espúria com o criminoso sexual Jeffrey Epstein, está afetando seriamente.
Nada é suficiente para acalmar a opinião pública – e Charles passou pelo raro vexame de ser vaiado por um antimonarquista, ao sair da sublime catedral de Lichfield. “Há quanto tempo você sabia de Andrew e Epstein?”, gritou o homem, filmando o próprio protesto. “Você pediu à polícia para acobertar Andrew?”.
Em quanto tempo um caso isolado pode começar a se repetir, com partidários da extrema esquerda vendo a chance ideal de açular os espíritos contra uma instituição que colocam na origem de todas as injustiças?
O verdadeiro exílio interno a que Andrew foi condenado pela família real se desenvolveu em três partes. Há seis anos, ele foi banido de todas as cerimônias oficiais e perdeu o tratamento de Sua Alteza Real, depois de uma autodestrutiva entrevista em que se mostrou prepotente e mentiroso. No último dia 19, o palácio anunciou que ele também não teria mais acesso a todos os títulos de nobreza, inclusive o mais importante, o de duque de York, castigo por ter mentido que havia interrompido os contatos com Epstein, condenado pela primeira vez por montar uma enorme rede de aliciamento de menores para atender suas fantasias sexuais, depois de uma visita final.
RAINHA NOVA RICA
Agora, o príncipe arruinado vai perder o palacete chamado de Royal Lodge, uma mansão de trinta cômodos onde sua avó, a rainha mãe Elizabeth, morou depois da morte precoce do marido, o rei George V, deixando-a desconsolada pela perda das mordomias de rainha consorte, que sua filha, Elizabeth II, tentou contornar de todas as maneiras (os fofoqueiros dizem que a rainha mãe gostava de se exibir porque, embora filha de conde, era pobre, tornando uma nova rica pelo casamento, enquanto a filha, de gostos modestos, já havia nascido princesa).
Pois mesmo tendo igualmente nascido príncipe, filho da rainha, Andrew também fez todo tipo de trambique para receber benesses de amigos ricos, principalmente do Oriente Médio e da Ásia Central. Assim, conseguiu pagar o leasing e a reforma do Royal Lodge, situado no imenso Parque de Windsor, a apenas cinco quilômetros do castelo que deu o nome à dinastia depois que a família resolveu trocar o extremamente alemão Saxe-Coburgo-Gotha por uma coisa mais inglesa. A nova identidade nasceu durante a I Primeira Guerra Mundial, desencadeada pelo parente próximo (e invejoso dos atributos da monarquia inglesa), o kaiser Guilherme II.
A permanência de Andrew no Royal Lodge criava um perigo iminente: o herdeiro William vai se mudar com Kate e os três filhos para uma mansão muito próxima, o que lembraria constantemente a imprensa – e a opinião pública – de que se tornou vizinho do tio tóxico. Todos os conhecedores dos meandros da monarquia concordam que William, que tem temperamento forte ao contrário da imagem terna que passa, é o principal carrasco de Andrew. Não quer ver o tio nem de longe. Diz o boato mais recente: ameaçou o tio de cassar os títulos de suas filhas, Beatrice e Eugenie, princesas por nascimento, se Andrew não saísse do palacete.
O herdeiro está assumindo funções crescentemente importantes pois o pai, embora muito ativo, tem um câncer disseminado, cuja origem continua escondida do público.
Para piorar, o momento de baixíssimo astral coincidiu com o lançamento póstumo da autobiografia de Virginia Giuffre, oferecida por Epstein para fazer sexo com Andrew em três ocasiões, quando ela tinha dezessete anos.
‘VOCÊ VAI LEVAR UMA DESSAS’
O catálogo de horrores vivido pela jovem americana é de arrepiar. Foi abusada desde a infância pelo pai, que a ofereceu a um vizinho para o primeiro ato sexual com penetração. Caiu nas drogas e na vida nas ruas, sofreu um violentíssimo estupro do homem com quem havia pegado uma carona e acabou saindo dessa vida horrível ao ir trabalhar no spa de Mar-a-Lago, o palacete-clube de Donald Trump.
Lá, foi recrutada pela amiga, comparsa e ex-namorada de Epstein, Ghislaine Maxwell. Os abusos ganharam uma dimensão muito mais sofisticada. A jovem Virginia achava que realmente tinha uma relação especial com o multimilionário que queria ser massageado e masturbado pelo menos três vezes por dia por meninas muito novas – “Quanto mais nova, melhor”, dizia a seu time de aliciadores, dos quais Virginia se tornou uma integrante, como outras meninas, numa perversa inversão de papéis.
Pelo temperamento maleável, ela também era uma das garotas passadas para os amigos importantes que Epstein queria agradar. Andrew, por exemplo, que, segundo a autobiografia, lambeu seus pés e chupou seus dedos – uma reedição bem significativa da cena protagonizada por sua mulher, Sarah, logo depois que se separaram e ela foi curtir a vida num passeio por St. Tropez com um “assessor financeiro” bonitão..
Muito pior foi a experiência com um homem identificado apenas como “ministro”, um “político global poderoso”, segundo o Telegraph, que a espancou com tanta violência que Virginia achou que ira morrer. Quando reclamou com Epstein, ouviu: “Você vai levar uma dessas de vez em quando”.
CASAS SEPARADAS
Dá vontade de vomitar – e essa é também uma reação coletiva a cada nova revelação sobre o comportamento de Andrew e Sarah, tendo a ex-duquesa escrito um e-mail subserviente a Epstein, dizendo que o tinha rejeitado publicamente da boca para fora, por exigências de imagem, mas continuava totalmente fiel ao “amigo firme, generoso e supremo”. Generoso mesmo: pagou as contas dela durante quinze anos. Agora, Sarah ficará sem a casa do ex-marido, um programa de televisão, a campanha de promoção de vários livros e as últimas organizações filantrópicas que ainda patrocinava. Em suma, uma sem teto, sem título e sem prestígio.
As novas revelações sobre os contatos do ex-casal York estão aparecendo no oceano de documentos entregues ao Congresso americano sobre o caso. Embora separados desde 1996, eles mantém uma ligação não apenas forte, como aparentemente bizarra: voltaram a morar juntos, mas não a dividir o leito conjugal, depois do divórcio. Um arranjo facilitado pela vastidão do Royal Lodge.
É por isso que agora, segundo a imprensa, Andrew está exigindo duas casas separadas, mas próximas para as visitas das duas filhas e quatro netos, uma para ela e outra para a ex-mulher. A dele seria o Frogmore Cottage, um casarão sem refinamento arquitetônico, mas requintadamente reformado por Meghan e Harry, que mal moraram lá e já decidiram largar tudo e ir para a América.
A casa de Sarah seria mais modesta, a mesma atualmente ocupada por William e Kate, de apenas quatro dormitórios – um arranjo que eles fizeram no fim da vida da rainha Elizabeth e deixava os agora príncipes de Gales sem espaço para uma babá ou uma avó – Carole, a mãe da princesa – dormir com os netos quando o casal tem compromissos noturnos.
A ideia de que a ex-duquesa de York seja diretamente associada ao casal deve provocar engulhos em William.
MAIS IMPOPULAR DA HISTÓRIA
Como todas as famílias, os Windsor também têm brigas por direitos, dinheiro e imóveis. Só que as brigas deles afetam uma instituição maior do que todos juntos. É impressionante, principalmente para espíritos mais céticos, a devoção com que muitos britânicos se referem à família real.
A encrenca também coincide com um momento ruim na política, com cidadãos tão revoltados pela economia anêmica e pela descontrolada imigração clandestina que, hoje, votariam majoritariamente no muito recente partido criado por Nigel Farage, o Reforma. Farage foi o pioneiro do Brexit e pode ser enquadrado na categoria populista de direita.
O primeiro-ministro Keir Starmer, do Partido Trabalhista, é o mais impopular da história, com apenas 27% de aprovação. Nos últimos dias, o reino foi engolfado por um caso simplesmente inacreditável: em vez de ser deportado, como deveria acontecer legalmente, o etíope Hadush Kebatu, foi solto da cadeia, com um saco plástico de pertences e 75 libras oferecida a todo preso liberado para as despesas iniciais.
Kebatu havia assediado uma colegial de quinze anos na cidade de Epping. Passou a mão em suas pernas, tentou beijá-la, disse que queria casar com ela e fazer um filho, tentando atraí-la para o hotel onde estava hospedado. Uma mulher adulta que viu a cena, interferiu. Kebatu também passou a mão nela e disse que era bonita.
NA BOCA DO SAPO
Poucas coisas provocam sentimentos mais fortes do que a ideia de um condenado por abuso sexual de menores estar livre pelas ruas, ainda mais por um erro burocrático.
Starmer entendeu o tamanho da encrenca, mesmo depois da captura do etíope, e anunciou que vai acabar com a permanência dos clandestinos em hotéis onde a legislação europeia, a qual mesmo depois do Brexit o país tem que seguir, obriga as autoridades a hospedá-los. Cerca de 900 clandestinos que aguardam o resultado de pedidos de asilo serão transferidos para alojamentos militares (já dá para ver os advogados especialistas em direitos humanos entrando com múltiplas ações e pedidos de indenização contra o governo).
Não é, como se percebe, um bom momento para Andrew, o príncipe despejado, e sua ex-mulher fazerem exigências. Isso só prejudica a imagem do rei, que não é unanimidade nacional desde quando assumiu publicamente o caso com Camilla, hoje a rainha consorte, e humilhou Diana.
A Inglaterra tem um histórico de relativa moderação na solução de conflitos, com o processo de controles parlamentares sobre a monarquia remontando à época anglo-saxã – mais de mil anos atrás. Mas a Torre de Londres fala por si sobre o destino dos caídos em desgraça ao longo de séculos, Hoje, não dá para mandar Andrew para lá, mas talvez até o chalé perto de um lago cheio de sapos seja demais para a opinião pública aceitar.
Ainda existe mais espaço para Andrew cair.