Fazendo jus a uma tradição que remonta aos precursores da filosofia na Grécia, é no formato de diálogo que se estrutura o novo livro dos professores Lúcia Helena Galvão e Clóvis de Barros Filho.
Em O Valor e o Sentido da Vida, que acaba de sair pela Editora Papirus 7 Mares, dois dos pensadores mais populares do país se encontram para discutir algo com o qual os antigos já quebravam a cabeça: que princípios e virtudes deveriam direcionar nossas escolhas e planos hoje?
Fiéis ao espírito de que é na base do diálogo que o conhecimento e a sociedade evoluem, os autores mobilizam ideias e pensadores dos cânones ocidental e oriental para debater os dilemas da era ultraconectada.
Nessa levada, diagnosticam o egoísmo como uma das principais feridas dos nossos tempos e alertam para a insustentabilidade dos serviços e produtos de autoajuda que vendem receitas fáceis por aí.
Em um mundo que clama por estímulos e respostas rápidas, o que eles propõem é um resgate da própria missão original da filosofia: a de ser um caminho, nem sempre curto tampouco suave, rumo à sabedoria e à felicidade. Cada um por si, mas dialogando com todos.
Com a palavra, Lúcia Helena Galvão.
Ao longo do livro, a senhora e o professor Clóvis falam com frequência sobre a virtude e a busca por princípios para nortear nosso dia a dia. O que seria uma boa definição para virtude atualmente?
Eu costumo definir virtudes como sinônimos de valores universais, aqueles que são válidos para a humanidade ao longo dos tempos. Por exemplo: justiça, bondade, fraternidade, amor… São esses valores que sempre serão práticos e válidos enquanto o ser humano for ser humano. Estão acima de qualquer ética ou cultura temporal e sempre são luzes no fim do túnel, orientadores para a evolução do homem. Não caducam e não vencem, inclusive os seus preceitos universais estão acima dos temporais, quer sejam leis, quer seja a cultura de qualquer povo. Ou seja, não pode haver dentro de uma cultura um preceito que vá acima, por exemplo, do valor universal da justiça e da fraternidade, porque ele não seria válido humanamente, não seria digno de ser respeitado pela condição humana.
Qual é o maior desafio para a filosofia nestes tempos tomados por comunicação digital e algoritmos de IA ?
Acho que o grande desafio para nossa época de tanta comunicação externa é desenvolver mais comunicação interna, ou seja, mais discernimento, capacidade de pensar por si próprio um ideal que justifique toda a sua vida, que esteja no campo do ser, que justifique a direção de vida que é tomada. Isto é, a individualidade, aquilo que se chamava tradicionalmente de nome interno, é isso que nós temos de desenvolver. Hoje estamos totalmente voltados para fora e, se não temos nada dentro de nós, a comunicação externa fica reduzida a ruído.
A filosofia é um caminho para conhecer e tornar viáveis as potencialidades humanas, como vocês explicam na obra. Mas justamente esse discurso foi sequestrado pelas narrativas de autoajuda, que hoje inclusive abundam na internet. Como separar o joio do trigo?
Eu costumo dizer que, no nosso momento histórico, a última coisa que a filosofia necessitaria fazer é a autoajuda. Nós estamos num momento em que o egoísmo predomina e está por trás de praticamente todas as atitudes humanas. Considerando que um dos valores universais mais importantes é a fraternidade, a filosofia orienta, sobretudo, a pensar mais como todo, a pensar como sociedade, a pensar como humanidade. Seria mais alter-ajuda do que autoajuda, ou seja, voltar-se para fora, sair da bolha do seu egoísmo.
Se tivesse que escolher um único filósofo para lhe acompanhar numa ilha deserta, quem seria – e por quê?
Se eu tivesse que escolher um único filósofo, com certeza escolheria Platão, sobretudo por conta de um diálogo, que é a República, que trata praticamente de todos os assuntos necessários para a construção de uma boa convivência humana, todos os parâmetros necessários para uma moral elevada. Portanto, Platão é muito abrangente, muito amplo e coloca o homem numa dimensão de buscar um ideal, de buscar uma ideia justificadora que dê um sentido maior à toda sua vida.
Como a reflexão filosófica pode nos ajudar a vencer o egoísmo diagnosticado no livro e que tanto alimenta as crises moral, social e ambiental que vivenciamos hoje?
Cada vez mais podemos perceber que o egoísmo, aquilo que na tradição tibetana é chamado de heresia da separatividade, vem de nos sentirmos muito diferentes uns dos outros, muito separados uns dos outros. Quanto mais a filosofia promove autoconhecimento, mais ela nos permite perceber aquilo que temos em comum, porque em essência somos exatamente o mesmo ser, sujeitos às mesmas dores, aos mesmos dramas, aos mesmos dilemas e necessitando fazer as mesmas escolhas.
Quanto mais mergulhamos em nós mesmos, encontramos não apenas a nós mesmos, mas a essência definidora da humanidade, que nos permite então estar mais próximos uns dos outros. Se o homem conhece superficialmente a si próprio, tende a ser egoísta e a lutar apenas pela sua própria pele. Se o homem conhece profundamente a si próprio, ele conhece profundamente um pouco mais de toda a humanidade.
