D. Lourdes passou a vida dando aulas na rede pública de São Paulo. Entrou na Justiça em 1997 para receber valores que o município lhe devia. Venceu a ação, mas o dinheiro não veio. A sentença virou precatório — o documento emitido pela Justiça que garante que o Estado deve pagar. Ainda assim, a fila não andava. Em 2021, já com a saúde fragilizada, depressão diagnosticada e dívidas acumuladas, ela desistiu de esperar. Vendeu o direito de receber para uma empresa, com 30% de desconto. Ganhou menos do que a Justiça determinou, mas ganhou em vida. Segundo os filhos de d. Lourdes, muitos dos colegas dela morreram antes mesmo de ver um centavo.
Histórias como a dela se repetem pelo Brasil. Precatório é, em palavras simples, a “nota promissória” emitida quando o governo — federal, estadual ou municipal — perde um processo judicial e deve pagar. O problema é que, ao contrário de um cidadão comum, o Estado não sofre bloqueio de bens, não é inscrito em dívida ativa e não tem prazo firme para pagar.
Hoje, estados devem R$ 110 bilhões e municípios, R$ 83 bilhões. Em muitos casos, a espera para receber passa de 10 ou 15 anos. A União também acumula uma dívida crescente, que saltou de R$ 37 bilhões em 2021 para mais de R$ 70 bilhões em 2025.
No ano 2000, foi criado o regime especial para pagamentos de precatórios, destinado a regularizar os atrasos dos estados e municípios com o pagamento de suas dívidas judiciais. Desde então, muitos entes conseguiram colocar em dia seu passivo: 80% dos municípios e 22% dos estados estão pagando no ano seguinte os precatórios do ano anterior; até o final de 2029, quase todos os municípios e outros 66% dos estados estariam em ordem, seguindo uma regra de percentuais mínimos da receita, variáveis conforme o caso, para a quitação dos precatórios. Somente alguns entes superendividados (3 estados e 68 municípios em todo o país) precisariam de regras adaptadas.
Bem ou mal, o regime especial de precatórios vem dando certo, apesar da instabilidade de suas regras. Frequentes mudanças constitucionais ocorreram, em geral destinadas a ajudar os entes endividados e postergar (ou baratear) o pagamento da dívida, mas a cada ano foram diminuindo os estados e municípios atrasados em seus precatórios. Agora, o Congresso discute a PEC 66, que muda novamente as regras, mas não somente para aqueles entes superendividados. Muda para todos, inclusive para quem já vinha conseguindo se regularizar.
Pela proposta, os governos poderão gastar menos por ano de suas receitas com o pagamento de precatórios. Também a forma de calcular a correção mudará: em vez de aplicar juros que preservem o valor real, usará índices mais baixos (IPCA+2%) — coisa que o Supremo já disse ser inconstitucional. Traduzindo: quem já espera há anos receberá menos do que a Justiça determinou e continuará sem saber quando vai receber. Em teoria, os precatórios deveriam ser quitados em prazos definidos: inscritos até abril, pagam-se no ano-calendário seguinte. Inscritos depois de abril ficam para o ano subsequente. Pela proposta, o prazo pra ins crever o precatório é antecipado de abril pra fevereiro, deixando assim mais gente esperando um outro exercício fiscal.
O problema não é apenas financeiro — é de confiança. O precatório é o símbolo de uma vitória na Justiça. Quando o governo ignora a decisão, passa a mensagem de que a lei não vale tanto assim. E, nesse cenário, quem mais perde não é apenas o titular do precatório, mas a credibilidade do próprio Estado de Direito.
No fim, precatório não é favor — é direito. E adiar pagamento de direito indefinidamente é trair a promessa de Justiça que a Constituição faz a cada brasileiro.