Embora pareça uma tendência recente, a dieta cetogênica, ou simplesmente keto, não é novidade. Sua versão clássica foi proposta em 1921 pelo médico americano Russell Wilder, como tratamento para epilepsia — doença caracterizada por crises convulsivas — que não respondia aos medicamentos disponíveis na época. A lógica era simples, mas nada fácil de seguir: cortar quase todos os carboidratos, aumentar consideravelmente a ingestão de gorduras e obrigar o corpo a utilizar gordura como principal fonte de energia. Esse processo leva ao estado de cetose, quando o organismo passa a queimar gordura armazenada em vez de depender dos açúcares presentes na alimentação.
Com o tempo, novos anticonvulsivantes mais eficientes tornaram o tratamento menos necessário, e a dieta acabou ficando em segundo plano na maioria dos casos. Décadas depois, ela ressurgiu — primeiro como estratégia de emagrecimento, e agora em um terreno bem mais delicado: a saúde mental, com destaque para o tratamento da depressão.
Quem reacendeu essa discussão foi o psiquiatra americano Chris Palmer, professor da Harvard Medical School e pesquisador da chamada “psiquiatria metabólica”, uma área que tenta entender como o metabolismo e o cérebro se influenciam mutuamente. Em setembro deste ano, Palmer publicou um estudo piloto que investigou o uso da dieta cetogênica como terapia complementar para estudantes universitários com transtorno depressivo maior. Foram 16 participantes, todos já em tratamento com medicação e/ou psicoterapia, que seguiram uma alimentação com menos de 50 gramas de carboidrato por dia. O cardápio incluía fontes de gorduras “boas”, como azeite de oliva, molhos para salada, pacotes de salmão e sardinha, carne seca, salgadinhos de queijo Whisps, nozes e sementes e uma alternativa de aveia, além de uma quantidade mínima de proteína.
Depois de 10 a 12 semanas, os resultados chamaram atenção: os sintomas de depressão caíram quase 70%, passando de uma média de 13,9 para 4. Palmer chegou a comemorar nas nas redes sociais, dizendo que “sim, a cetogênica funciona para a depressão”. Na internet, já havia um burburinho de profissionais de saúde – inclusive brasileiros – defendendo a dieta como arma contra o transtorno, e com esses resultados o assunto esquentou, se tornando um dos principais argumentos dos seus defensores. Mas será que a estratégia realmente funciona?
As lacunas
Para o nutricionista Igor Eckert, expert na análise de estudos científicos, é importante colocar esses números em perspectiva. “Por incrível que pareça, resultados assim são comuns em estudos que envolvem alimentação e depressão. É difícil encontrar algum que não tenha mostrado melhora de pelo menos 40% ao longo do tempo”, explicou em sua página no Instagram, onde costuma divulgar suas análises.
Ele lembra que outros trabalhos já mostraram efeitos parecidos com dietas bem diferentes. Em 2017, por exemplo, o estudo SMILES, que testou a dieta mediterrânea, encontrou uma melhora de 44% nos sintomas depressivos. Já em 2021, um estudo com base na chamada “dieta tradicional brasileira” observou 55,8% de melhora.
O problema, explica Eckert, é que esses resultados não provam que a dieta foi, de fato, a responsável pela melhora. No estudo liderado por Palmer, todos os participantes já faziam algum tipo de tratamento convencional, e é esperado que, com o tempo, haja uma evolução gradual dos sintomas. Além disso, fatores como a adesão ao tratamento, o acompanhamento próximo dos pesquisadores, o efeito psicológico de participar de um estudo (o chamado “efeito placebo”) e até mudanças no estilo de vida durante o processo podem influenciar os resultados. Ou seja, é o clássico dilema do ovo e da galinha: o que veio primeiro, a melhora porque o paciente mudou a alimentação ou a melhora porque ele já estava em tratamento e se sentindo mais motivado?
Eckert lembra ainda que o trabalho de Palmer foi um estudo piloto. E esse detalhe faz toda a diferença. “Um estudo piloto é uma espécie de ‘ensaio geral’. Ele serve para testar se o protocolo é viável, se os participantes conseguem seguir a dieta, se as medições funcionam, e se vale a pena investir em uma pesquisa maior e mais robusta”, explica.
Em outras palavras, um estudo piloto não é feito para comprovar se algo funciona, mas sim para ver se é possível testar aquilo de um jeito mais estruturado. Ele geralmente envolve poucas pessoas, não tem um grupo controle (como um grupo que não faz a dieta para fins de comparação), e não é “cego” (ou seja, todos sabem o que estão fazendo, o que pode influenciar a percepção dos resultados).
A psiquiatra Doris Moreno, do Programa de Transtornos do Humor do Instituto de Psiquiatria (IPq) da USP, também acompanha o tema e já teve pacientes que tentaram a dieta por conta própria. “Tive dois pacientes que adotaram a cetogênica sozinhos e desistiram depois de um ou dois meses, observando apenas uma perda de peso temporária”, conta.
Da parte dela, a opinião é alinhada com a de Eckert – a de que devemos ter cautela. “O estudo de Palmer é experimental e exploratório. De fato, houve aumento do BDNF, uma proteína que protege neurônios, e redução da leptina, associada à gordura corporal. Mas o estudo tem limitações sérias: amostra pequena, grupo muito específico (estudantes jovens, já em tratamento) e sem grupo controle. Tudo isso indica um enviesamento dos resultados.”
Ela lembra, ainda, que outras universidades, como Stanford e Edimburgo, também têm investigado o uso desse “padrão gorduroso” em condições como esquizofrenia e transtorno bipolar, dentro da chamada psiquiatria metabólica, mas todos eles pilotos e sem metodologias robustas que comprovem eficácia. “A questão é que existe uma busca por tratamentos “naturais” para distúrbios mentais e as pessoas se fascinam com quaisquer novidades nesta área”, opina Doris.
Os riscos da cetogênica
Mesmo que as evidências ainda não sustentem o uso da cetogênica para tratar depressão, há situações em que ela pode ter ser considerada, como em casos de resistência à insulina ou síndrome metabólica, quando o corpo tem dificuldade de processar glicose. Ao cortar quase todos os carboidratos, o organismo é forçado a usar gordura como principal fonte de energia, incluindo a armazenada no tecido adiposo, o que leva à perda de peso, geralmente o efeito mais visível da dieta.
“Na prática, ela pode ser considerada caso a caso, como por exemplo em pessoas com depressão ou bipolaridade que também tenham síndrome metabólica importante, mas sempre com supervisão médica e nutricional, metas bem definidas e acompanhamento constante”, ressalta a psiquiatra. “O problema é que, muitas vezes, a perda de peso é transitória, e a dieta sozinha não resolve questões psiquiátricas.”
Além disso, sem acompanhamento profissional para interpretar os sinais do corpo, a dieta cetogênica traz uma série de desafios e riscos — alguns até sérios. Para começar, a adesão é complicada. Cortar quase todos os carboidratos do dia a dia — pão, arroz, frutas, leguminosas, massas — exige esforço, disciplina e planejamento. Não à toa, no ranking anual da US News & World Report, que reúne especialistas para avaliar dezenas de dietas, a cetogênica ficou em 34º lugar entre 35 planos alimentares em 2020, sendo considerada uma das piores em termos de sustentabilidade.
A perda de peso inicial (e transitória, sempre bom ressaltar) pode até motivar, mas manter a dieta no longo prazo é difícil. Além disso, ela costuma ter alto custo, pouca variedade e exige acompanhamento próximo para não causar deficiências nutricionais. “A cetogênica mal conduzida pode aumentar o LDL, o chamado ‘colesterol ruim’, elevar o risco de cálculos renais, causar constipação intestinal e levar a deficiências de vitaminas e minerais”, explica Doris.
Porém, em meio ao hype das redes sociais, o maior risco talvez seja a substituição de tratamentos eficazes, como medicação e psicoterapia, por uma dieta sem comprovação científica, o que pode agravar sintomas psiquiátricos e até desencadear novas crises. “Saúde mental é coisa séria. O perigo real é inflar expectativas e vender a dieta como uma panaceia, sem que haja evidências científicas suficientes”, alerta a psiquiatra.