O escândalo dos roubos das aposentadorias do INSS mostrou o que acontece quando incompetência, leniência e cumplicidade se aliam à corrupção num ambiente que define o destino de bilhões de reais em recursos públicos. Por anos, sindicatos e entidades falsificaram declarações que autorizavam descontos ilegais nas pensões dos idosos. O golpe rendeu bilhões de reais aos trambiqueiros. Ao longo desse tempo, vários alertas de que algo errado estava acontecendo foram emitidos, mas pouco ou quase nada se fez para impedir a fraude. O esquema praticamente triplicou de tamanho no atual governo e só foi interrompido após uma operação da Polícia Federal em abril. O saldo, por enquanto, é o seguinte: o dinheiro, como de costume, desapareceu, e o prejuízo, calculado em cerca de 4 bilhões de reais, vai ser pago pelo contribuinte.
Esse balaio que une incompetência, leniência, cumplicidade e corrupção pode agora se repetir no seguro-defeso, como é chamado o auxílio para garantir o sustento de pescadores artesanais quando são proibidos de lançar as redes no período de reprodução dos peixes. Criado em 1991, o seguro-defeso paga um salário mínimo aos inscritos no programa. Os mecanismos de controle e fiscalização sempre foram frágeis, o que abre as portas para fraudes. Assim como no caso dos aposentados, sindicatos e associações usaram CPFs falsos e senhas de servidores públicos para cadastrar pessoas que nunca foram pescadores. Há casos em que os beneficiados nem sequer existiam. A polícia descobriu que no meio dessa montanha de pedidos havia “pescadores fantasmas”, “pescadores mortos” e “pescadores com dupla identidade”, que recebiam o auxílio duas vezes.

Os primeiros sinais de que os desvios ocorriam em larga escala surgiram em 2020, quando a Polícia Federal colheu indícios de irregularidades em nada menos que doze estados. Naquele ano, foram identificados milhares de autorizações de pagamentos a falsos pescadores, gerando um rombo estimado em 1,5 bilhão de reais, quase metade do orçamento do programa. Apesar das evidências, a tramoia não foi combatida como deveria. O número de “pescadores” e os valores dos benefícios continuaram crescendo.
Segundo dados oficiais, foram pagos 2,7 milhões de benefícios em 2018. Apenas nos primeiros seis meses de 2025, já são 4,1 milhões. Os valores também são ascendentes. Em 2018, a União desembolsava 2,5 bilhões de reais. No primeiro semestre deste ano, já são 6,2 bilhões (veja o quadro). Há dezenas de investigações em andamento pelo país, mas uma delas é reveladora sobre o mecanismo que movimenta o esquema. Em abril, a Justiça Federal do Pará transformou em réus dezenove representantes de cinco sindicatos e associações de pescadores do estado, acusados de fraudar o programa. Uma das entidades envolvidas é a Z-16. Entre 2019 e 2021, ela apresentou ao INSS, órgão responsável pelos pagamentos do seguro-defeso, nada menos que 30 000 requerimentos de benefícios.
José Fernandes Barra, o líder da colônia Z-16, é visto como o mentor das fraudes e responde a processo por estelionato. Ex-vereador do PT, ele é presidente da Federação dos Trabalhadores da Aquicultura e Pesca do Pará, circula com desenvoltura pelos gabinetes mais importante de Brasília e tem acesso às autoridades. Em novembro, quando já estava indiciado pela polícia, Barra foi recebido pelo ministro da Pesca, André de Paula, para tratar sobre a criação de um auxílio extraordinário aos pescadores afetados pela estiagem. Em abril, já denunciado pelo Ministério Público por estelionato, participou de uma reunião com assessores do presidente Lula para discutir “estratégias” para o setor pesqueiro. Em julho, agora na condição de réu, foi recebido no Palácio do Planalto pela ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann. O tema do encontro: a “ameaça” ao acesso dos pescadores ao seguro-defeso. Um mês antes da audiência com a ministra, o governo havia editado um decreto aumentando o nível de segurança para a concessão do benefício.
Procurado por VEJA, José Barra não quis se manifestar. Segundo o advogado dele, Neto Mindello, o sindicalista nunca foi convocado pelas autoridades para prestar esclarecimentos. O defensor ressalta que os beneficiários do auxílio são pessoas humildes, que tinham dificuldade de preencher os formulários de cadastramento, o que pode ter gerado informações erradas e a consequente suspeita de irregularidade. Em relação aos encontros com a ministra Gleisi Hoffmann, Mindello confirma que o objetivo da reunião foi discutir alguns detalhes das medidas de segurança previstas no decreto que estabeleceu a exigência de emissão de uma carteira de identidade especial para os pescadores, além do reconhecimento facial antes da homologação de novos benefícios. De acordo com o Ministério da Pesca, um recadastramento vem sendo realizado pela pasta exatamente para evitar as fraudes. Segundo a Polícia Federal, os desvios patrocinados pela Z-16 e outras entidades do Pará chegaram a 120 milhões de reais. A rede criminosa pode ter outros peixes graúdos.
Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2025, edição nº 2957