Pelé faria 85 anos hoje, 23 de outubro. Pelé morreu em 29 de dezembro de 2022. Não há aí nenhuma novidade, para além da efeméride. É como dizer que Frank Sinatra está resfriado, e na evidente impossibilidade de ouvir o rei do futebol, tentar desenhá-lo a partir dos personagens que o cercaram, e no caso do camisa 10 seria toda a humanidade da segunda metade do século XX e as duas primeiras décadas do século XXI. Mas há uma novidade em torno da lembrança do nome de Pelé, e ela não é lá muito boa.
Quase três anos depois da morte, na data redonda do aniversário que não haverá, é triste perceber que Pelé tem sido pouco homenageado. O mais conhecido brasileiro de todos os tempos, o fundador de uma ideia de país aos 17 anos, o craque miúdo que nos tirou do complexo de vira-latas, como intuiu Nelson Rodrigues, é grande demais para agora despontar de modo tão tímido. Em 2022, ao morrer, Pelé foi manchete de capa de todos os jornais do mundo – teve muito, mas muito mais destaque do que o papa emérito Bento XVI, que morreria dois dias depois. Foi celebração merecida e emocionante – mas, com o tempo, as lembranças foram diminuindo a não mais poder. É pouco para a dimensão de Pelé.
Em entrevista para o programa BOLA QUADRADA do site de VEJA, o jornalista escocês Andrew Downie foi direto ao ponto. Para ele, Pelé foi um dos arquitetos do Brasil moderno, Pelé tem o tamanho de grandes nomes como Charlie Chaplin, Gabriel García Márquez, Frida Kahlo e Salvador Dali. Precisa ser reverenciado, e não por acaso Downie está pondo o ponto final na primeira grande biografia do jogador, Épico: The Real Pelé And the Country, Culture and Colleagues That Made Him the Greatest Footballer of All Time, ainda sem título em português, que será lançada em 2026, logo antes da Copa do Mundo dos Estados Unidos, México e Canadá. Downie, no BOLA QUADRADA, lembrou incomodado de uma reportagem recente do The New York Times elencando alguns dos grandes momentos do esporte em todos os tempos. Há a semifinal de Maradona contra a Bélgica, na Copa de 1986; há a final de Messi e Mbappé na espetacular final entre Argentina e França, em 2022; há o golaço de Marta na semifinal da Copa do Mundo feminina, em 2007; há o recorde mundial de Usain Bolt em 2009. Há outros destaques realmente espetaculares, mas não há nada de Pelé. É inaceitável, erro crasso. “As pessoas têm um pouco de preguiça”, diz Downie. “Se não vi, não existe”. Dito de outro modo, ancorado na máxima do jornalista e escritor Ivan Lessa: “De 15 em 15 anos o Brasil esquece os últimos 15 anos”. Trata de nossa sociedade, mas é constatação que poderia se estender ao mundo.
Pelé, é claro, não foi campeão em tudo. Foi muito criticado pelo comportamento com uma filha, Sandra Regina Machado Arantes do Nascimento, que reconheceu tardiamente – e a amigos nunca escondeu a tristeza e o desconforto pela situação, sobretudo depois da morte prematura de Sandra, de câncer, em 2006, aos 42 anos. Apanhou muito quando disse que o povo não sabia votar, nos anos 1970, ainda debaixo da ditadura militar (“o povo brasileiro não está preparado para votar, por falta de prática e de educação; vota mais por amizade”). Não adiantou explicar que não era bem aquilo que havia dito, porque de Pelé se esperava fora de campo o que fazia dentro dele – algo humanamente impossível, ainda que ele não fosse exatamente humano com a bola nos pés. Exigia-se que se comportasse como Muhammad Ali, o boxeador que desferia socos como soltava opiniões políticas agudas, a um só tempo ícone do esporte e da cultura dos anos 1960 e 1970. Mas atenção: o Brasil não é os Estados Unidos, a herança da escravidão daqui é diferente do segregacionismo de lá. Pelé cresceu na ditadura e Ali, na democracia. O jogador dividia o tempo com os companheiros de clube e seleção, enquanto Ali tinha lições com a liderança radical de figuras como Malcom X – e pelas bandas de cá o mito da democracia racial se espraiou sorrateiramente. Foi apenas em 2017, em depoimento exclusivo a VEJA, que Pelé tratou pela primeira vez de preconceito, de modo contundente e esclarecedor. “Nunca neguei minha cor de pele, eu gosto de ser negro. Sempre admirei muito meus pais, meus irmãos, toda a minha família, de pessoas negras. Mas Deus me pôs num caminho diferente do da maioria da população brasileira e, desde criança, nunca tive problemas com racismo”.
Pelé, enfim, talvez não tenha tido o comportamento público que se imaginava que pudesse ter, em cobrança injusta. No Brasil, sem dúvida, foi condenado em vida. No exterior, por ter explodido em tempo ainda sem televisão e internet, sem as redes sociais, foi sendo apagado. Não deveria ser assim, e em todas as listagens superlativos do esporte, ele deveria aparecer. Vai aqui, então, uma pequena ajuda para o rol montado pelo The New York Times, uma pequeníssima seleção de instantes indeléveis de Pelé.
29 de junho de 1958
O gol na final contra a Suécia, com um chapéu dentro da grade área. Ele tinha 17 anos. O choro no ombro de Gylmar e Didi é comovente, ainda agora.
11 de outubro de 1962
Os três gols na final do Mundial de Clubes, do Santos contra o Benfica, em vitória por 5 a 2
19 de novembro de 1969
O gol 1 000 no Maracanã
17 de junho de 1970
O quase-gol mais bonito de todos, desde sempre, ao deixar a bola correr de um lado e o goleiro uruguaio Mazurkiewicz do outro

Pelé, enfim, não pode jamais ser esquecido, e que ano a ano, nos aniversários de nascimento e morte, seja levado ao pedestal da criatividade e beleza do que é capaz o ser humano, apesar dos defeitos. Pelé, enfim, é como Frank Sinatra, ou mais. Da célebre reportagem de Gay Talese: “Sinatra refriado é Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível – só que pior”. O mundo sem Pelé, sem a bola de Pelé, é como Sinatra resfriado, Michelangelo sem pincel ou mármore.