O Exército russo não sai do lugar – uma posição ruim para a guerra moderna, baseada na capacidade de fazer manobras rápidas e surpreender o inimigo. Em vez disso, permanece a tática de mandar, a cada poucos minutos, dois ou três soldados para a linha de frente, Têm morte praticamente garantida, mas indicam aos russos onde estão os inimigos, que são uma chuva incessante de drones, a maior mudança sistêmica introduzida nessa guerra. Pelas contas dos comandantes russos, todas as defesas já deveriam ter sido tomadas e as pequenas cidades, tão cruelmente bombardeadas, no método criminoso de ter prédios civis como alvo, continuam resistindo, à exceção de localidades próximas de Zaporijia. A situação foi assim resumida pela revista Economist : “A Ucrânia não se renderá e a Rússia não sabe como ganhar”. É uma frustração tremenda para um líder como Vladimir Putin, que não é bom de lidar com isso.
É impossível que Putin seja enganado pelos generais, mas também é impossível que as promessas de vitória eminente ao longo da meia lua que os russos ocupam no Oeste da Ucrânia, sempre com uma cidade estando a centímetros de ser conquistada, não encontrem eco no homem que quer reconstituir o poderio imperial da Rússia.
É um homem paranoico, como tanto combina com a mentalidade russa que nos acostumamos a ver durante a era da União Soviética. Putin mantém três gabinetes exatamente iguais ao que ocupa no Kremlin, em palacetes dos quais fala à nação como se estivesse em Moscou. São separados por grandes distâncias.
O gabinete no Kremlin dá o tom das cópias. Sochi, no Mar Negro, deveria ser o lugar para relaxar, inclusive numa discoteca subterrânea com postes para que dançarinas de pole dancing exibissem seus dotes, mas a proximidade com a Ucrânia é perigosa. Novo Ogoroyo, perto de Moscou segue na mesma linha de cópia idêntica. Em Valdai, no meio de uma floresta cercada por mísseis, ele passa mais tempo, com a mulher oficiosa, a ex-ginasta Alina Kabaeva, e os dois filhos que tem com ela, Ivan e Vladimir. As crianças, que tiveram que sair da Suíça quando começou a guerra, moram e estudam, com uma equipe inteira de professores e instrutores de esportes para contrabalançar a solidão. Numa raríssima confidência, Putin disse numa entrevista recente que “em casa, os pequenos falam chiinês” – mas a China, obviamente, tem seus próprios planos e eles não obrigatoriamente se confundem com os de Putin.
EXPURGO DOS BLOGUEIROS
O principal objetivo da vida quádrupla de Putin é protegê-lo dos inimigos internos. Os externos, obviamente, espionam tudo. Ninguém escapa à rede americana de espionagem eletrônica, mas nunca se sabe exatamente de onde virá uma tentativa de tomar o poder ou mesmo de mudar algumas coisas na guerra, como aconteceu no caso do chefão do Grupo Wagner, Ievgueni Prigojin, morto por uma bomba no seu jato particular. Os múltiplos esconderijos são um clássico do paranoico mundo em que vivem os russos, sempre com espiões espalhados por toda parte. Já houve também várias suspeitas do uso de sósias, identificados através de pequenos detalhes como a curvatura da orelha ou o formato das mãos – Putin aliás apareceu com as suas inchadas, em mais um indício de doenças que nunca são abordadas, que dirá esclarecidas.
Também não são esclarecidos os motivos que levaram fiéis blogueiros que cobrem a guerra na condição de ex-militares e costumam ser mais realistas do que o rei, exigindo mais agressividade das operações militares. Eles criticam comandantes específicos, mas jamais o Grande Líder. Os castigos podem ser pesados. O blogueiro Roman Alekhin foi declarado “agente estrangeiro”, a tática usada desde os tempos do stalinismo para desmoralizar adversários internos.
Os blogueiros militares, ou “milbloggers”, eram uma espécie de câmara de descompressão, oferecendo um espaço de reclamações aos que condenavam o estilo das operação, não sua essência. Alekhin foi acusado de desvio de fundos destinados por doadores aos soldados em campo, não para ele sair por aí num novo carro esporte.
Oksana Kobeleva, criadora de um canal do Telegram para incentivar a guerra, foi detida e acusada de tentativa de desmoralização da operação militar por ter criticado o comandante das forças especiais da Chechênia.
AVANÇOS MILIMÉTRICOS
Putin sofreu um enorme golpe estratégico quando Donald Trump ficou desiludido e mudou de opinião sobre ele, aumentando as sanções americanas. Trump descobriu que Putin não quer paz coisa nenhuma e não liga a mínima para a morte de “jovens russos”, como diz o presidente americano.
Segundo cálculos da Economist, “até meados de outubro desse ano, as baixas russas aumentaram quase 60%, situando-se entre 984 mil e 1,42 milhão. O número de mortos se situa agora entre 190 mil e 480 mil. É possível que morram cinco russos para cada ucraniano” – a proporção clássica, é de três atacantes para cada defensor.
Apesar dos avanços milimétricos e de um cerco constante, a queda de cidades importantes chega a ser anunciada, mas não se concretiza. Prokovsk está para ser conquistada.
Putin obviamente conta com a vantagem eterna dos russos – a quantidade – e assim pretende tomar mais territórios ucranianos para chegar por cima a um eventual cessar-fogo. Conta também que Trump, embora de mal com ele, detesta Volodimir Zelenski. É muito pouco para quem pretende reviver um império e agora está às voltas com decisões difíceis, como ajudar Nicolás Maduro na sua inexorável derrocada.
UMA DACHA PARA MADURO
Iria Putin, com seus mísseis antiaéreos, provavelmente a única coisa que funciona na Venezuela, peitar Trump em nome de um aliado condenado?
A Venezuela tem grande importância estratégica para a Rússia, tal como Cuba, mas também implica num risco enorme. Putin tem que decidir se vai para o confronto indireto com o presidente americano – que seria entre as duas maiores potências nucleares do planeta – ou se oferece uma dacha, com todos os luxo, para seu amigo Nicolás mudar de vida.
Em algum lugar de seus quatro palácios. Putin tem que considerar todas as hipóteses. Os submarinos espiões avistados próximos de países europeus mostram como ele também sabe aplicar pressões nos adversários. E o público interno? Pesquisas mencionadas pela Economist mostram que 70% dos russos apoiam a guerra, embora apenas um em cada cinco seja um defensor fervoroso da operação.
As pequenas diferenças entre os gabinetes de Putin foram levantadas em 700 vídeos em que ele aparece falando à nação. São detalhes como as alturas ligeiramente diferentes dos interruptores de luz, dos suportes metálicos que seguram a televisão em frente à mesa de trabalho, descontinuidades entre os painéis de revestimento das paredes. Dá um pouco de aflição ver esse clássico dos regimes autoritários – um líder semovente entre esconderijos – se desenvolver diante de nossos olhos. Como ex-agente d KGB, Putin deve saber muito bem das limitações dessa tática e do fato de que é uma manifestação de fraqueza, não de força.
Seu amigo Maduro também está passando as noites num bunker, cercado de guarda-costas cubanos e russos e vendo os aliados desaparecer, um destino que Putin vai fazer de tudo para não seguir. Na realidade, é inconcebível pensar em Putin cantando Imagine como Maduro, cada vez mais apavorado, na semana passada. É de fazer John Lennon rolar na tumba.