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Pânico na França: a ascensão e queda dos famosos vinhos de Bordeaux

Poucas regiões do mundo dos vinhos carregam nas garrafas a mística de Bordeaux. Um dos mais famosos apreciadores dos produtos daquela região do noroeste da França, o escritor Ernest Hemingway (1889-1961) definiu em uma carta a um amigo: “Os vinhos de Bordeaux são como companheiros discretos; não se impõem, mas permanecem na memória como uma amizade verdadeira”. A lista de fãs é longa e variada. Tem políticos (Winston Churchill), cineastas (Francis Ford Coppola) e esportistas (Zinedine Zidane), entre outros. Para muitos, cada safra de Bordeaux é um capítulo da história da França. É de lá que são produzidos uma série de ícones pelos fab five châteus centenários: Lafite, Latour, Margaux, Mouton e Haut-Brion.

Ocorre que o novo capítulo dessa incensada história tem cara de tragédia. Desde o começo deste ano, há rumores de que Bordeaux vive uma crise. O termômetro que acendeu de vez o sinal de alerta foi soada na “en primeur“, como se chama o método de venda de vinhos que acontece na primavera, após a colheita do ano anterior, quando os vinhos ainda estão envelhecendo em barricas (compradores pagam pelo produto antes de ser engarrafado, o que gera renda imediata para os produtores e dá chance de investir em safras de alta qualidade e tiragem limitada). A campanha “en primeur” de 2024 foi comparada com a de 1930, um ano após a quebra da bolsa de valores de Nova York, que culminou na Grande Depressão. Os “négociants” (agentes, negociantes), figura que desde os tempos remotos são responsáveis por todo o negócio do vinho, que antes se vangloriavam de vender safras inteiras em minutos, viram seus estoques paradinhos, juntando poeira nos armazéns da região.

A fama dos Bordeauxs podem ter se transformado num veneno para o produto, inflacionando além da conta os vinhos de lá. Para se ter uma ideia um Château Margaux 2019, Premier Grand Cru Classé, chega no Brasil por R$ 22.500 e pode ser comprado apenas uma garrafa por CPF na importadora Mistral. Segundo os críticos, esses altíssimos valores afastaram os amantes da região e afugentam os consumidores mais jovens. A hashtag “Bordeaux bashing” (ataque a Bordeaux, numa tradução livre) ganhou a Europa e Estados Unidos para falar da especulação de preços e atraso percebido na adoção de práticas de agricultura biológica, em comparação com outras regiões.

À medida em que os preços subiam e o vinho deixava de ser acessível ao consumidor médio, a relação de Bordeaux com seus clientes históricos se enfraqueceu. Consumidores fieis, que durante décadas compraram safra após safra, se viram forçados a procurar alternativas. E encontraram — na Borgonha, na Toscana, no Piemonte, em Napa, em Portugal e no Chile. Inclusive cartas de importantes restaurantes do mundo estariam substituindo seus Bordeaux por essas regiões.

A maior parte dos rumores sobre a queda vêm da Inglaterra, a nação que no século XII, com o casamento de Leonor da Aquitânia e Henrique II de Inglaterra, foi responsável por transformar Bordeaux em um importante centro de exportação de vinhos para a ilha britânica, impulsionando sua prosperidade. Agora, os mesmos ingleses passaram a decretar que estariam “démodés” os vinhos produzidos com o blend mais famoso do mundo, das uvas Cabernet Sauvignon, Merlot e Cabernet Franc, uma receita potente, encorpada e envelhecida em madeira francesa.

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Para Thiago Mendes, fundador da Eno Cultura, responsável em São Paulo por um dos cursos de vinhos mais prestigiados do mundo, o WSET, e educador certificado de Bordeaux, nem o jovem está desconectado da região, nem a complexidade de seus vinhos está fora de moda. O problema é a dificuldade em baixar os preços de uma região que se tornou ultra premium. “Imagine quem pagou 500 libras por um Châteaux Palmer em uma safra e, no ano seguinte, encontrar a mesma garrafa por 200 libras? Eles vão perder consumidores. Melhor perder as vendas agora”, diz.

NEGÓCIOS DA CHINA

Segundo Mendes, o que acontece hoje no aristocrático noroeste da França será em breve o desafio de todas as grandes regiões produtoras. Grandes países compradores passaram a fazer seus próprios vinhos, com excelente qualidade. “A China, que era um grande comprador de Bordeaux, está deixando de consumir o vinho francês para consumir o vinho local”, exemplifica o especialista. Com relação aos jovens, ele não acredita que eles não estejam bebendo álcool, apenas que eles não têm pode de compra de vinho. Mendes falou com a coluna AL VINO enquanto estava no Uruguai e disse que, além do consumo global ter diminuído, as pessoas estão evitando gastar dinheiro. “Por aqui no Uruguai, bares e restaurantes estão vazios, um cenário parecido ao que se viveu com a crise financeira de 2018”, compara. Diante de novos desafios, regiões como Champanhe ou mesmo a Austrália, que recentemente perdeu a China como principal comprador, já diminuíram vinhedos e reduziram a quantidade de produção de suas vinhas, o que pode ser um caminho a seguir em Bordeaux, responsável por 1% da produção global de vinhos no mundo.

Em meio à crise, o Brasil ainda parece um porto seguro para os Bordeaux. “Brasileiro bebe alguns vinhos por status e Bordeaux ainda é símbolo maior de status. A complexidade que entrega é indiscutível, não se compara a Toscana ou Napa, por exemplo, e agrada muito ao paladar nacional”, diz. Em algumas adegas em que ele é chamado para dar consultoria de rótulos, cerca de 90% dos vinhos são de Bordeaux e 10% de Borgonha e outras regiões. Falando em cifras, a cada 3 milhões de vinho de Bordeaux, compram-se 10 mil de outras regiões, só em uma adega. Ele conta que há clientes que têm em casa 15 safras de Château Lafite-Rothschild, 10 garrafas de cada ano, que chegam em jatinhos particulares. “O brasileiro gosta de ser bem recebido e o Lafite, por exemplo, te recebe com honras. Na Borgonha, não importa o dinheiro que se tenha, eles não abrem as portas”, conta.

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Outro sinal dos tempos, os “négociants”, que antes eram inacessíveis, hoje têm aparecido por aqui em busca de importadores. “Alguns deles já estão oferecendo a importação direta, que pode ser apenas uma caixa, por exemplo, pagando impostos, claro, mas com tudo desembaraçado. Eles vão começar a vender diretamente aos consumidores finais”, diz Mendes. Entre um chileno de R$ 500 e o segundo vinho de um grande Châteaux de Bordeaux por 50 euros mais impostos, quem será que o consumidor brasileiro irá escolher?

Claro que os produtores de Bordeaux não estão assistindo toda essa crise sentados à sombra de suas centenárias videiras. Discutem reduzir em até 45% os valores dos rótulos para o mercado asiático, planejam eventos de vinhos voltados para o público jovem, estudam novas variedades de uvas além de migrar vinhedos para cultivos orgânicos e biodinâmicos.

Vale tudo para salvar Bordeaux e evitar que os lucros virem vinagre.

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