Os limites da perversidade foram ampliados pelo relato feito esta semana pelo pai de Noa Marciano, a jovem soldado cuja morte já era conhecida, cujo corpo foi recuperado em Gaza apenas uma semana depois de ser enterrado, em novembro de 2023. Avi Marciano contou que recebeu um vídeo pelo Telegram mostrando a monstruosa execução de sua filha.
Ferida na perna por um bombardeio israelense enquanto era mantida como refém, logo depois do ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023, Noa, de 19 anos, aparece numa maca no hospital de Al Shifa, implorando por sua vida. Um médico pega uma injeção e aplica ar em sua veia. No final do vídeo, “o maior pesadelo que se possa imaginar”, nas palavras do pai, Noa aparece coberta de suor e já morta.
“A pessoa que tirou a vida dela nem era um terrorista do Hamas, era um civil. Um profissional da medicina que jurou preservar a vida”, disse Avi Marciano. “Absorvam isso. Em Gaza, se você é judeu, sua vida não significa nada, nem para os terroristas nem para os civis. Esta é a verdade que o mundo se recusa a ver”.
Noa Marciano era uma das sete jovens militares capturadas na base de Nahal Oz. Todas voltaram vivas, menos ela. Quatro dias depois de ser sequestrada, apareceu num vídeo do Hamas pedindo para que os bombardeios israelenses fossem suspensos. Forças israelenses estiveram muito perto de poder resgatá-la, mas Noa foi ferida e levada para o hospital.
Uma semana depois, os israelenses encontraram seu corpo e o levaram para ser enterrado, num ambiente de grande comoção nacional, com o país ainda em profundo estado de choque pelas atrocidades cometidas pelo Hamas no ataque ao sul de Israel, com 1,2 mil mortos. A autópsia não encontrou sinais de que tivesse morrido por causa de um bombardeiro, como disseram os sequestradores.
GOVERNO PROVISÓRIO
Durante o ataque, houve casos de terroristas que usaram celulares de vítimas para transmitir torturas e mortes a familiares. O caso de Noa Marciano é o primeiro registro de um vídeo da morte de uma pessoa mantida como refém em Gaza enviado a alguém da família.
Todos os detalhes só podem ter saído de mentes monstruosamente pervertidas. Eles ajudam a entender como os israelenses precisam superar enormes barreiras interiores que os levam a rejeitar desdobramentos futuros do plano de cessação das hostilidades – de forma similar, os moradores de Gaza destruída também precisam relevar sua própria repulsa.
Todos os especialistas em conflito dizem a mesma coisa: só inimigos fazem a paz. A trégua em Gaza foi conseguida, em primeiro lugar, por causa da superioridade bélica de Israel, que quebrou a resistência do Hamas. Em segundo, porque Donald Trump e seus negociadores, Steve Witkoff e Jared Kushner, conseguiram arrancar o acordo das duas partes para um processo progressivo.
A libertação de todos os reféns, vivos e mortos, faltando apenas um corpo que ainda não foi localizado, abre caminho a uma complicadíssima segunda fase. É preciso formar e deslocar uma força de estabilização – nem se usa o termo força de paz por causa dos precedentes negativos na região -, desarmar o Hamas e empossar um governo provisório formado por personalidades palestinas com histórico de neutralidade, um dos maiores obstáculos.
SEM QUEIMAR O FILME
Donald Trump disse na quarta-feira que anunciará os nomes dos integrantes do Conselho de Paz no começo do próximo ano – a expectativa era de que o anúncio fosse feito até o Natal.
O Conselho seria integrado pelo próprio Trump, além de Witkoff e Kushner, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair e o diplomata búlgaro Nikolai Mladenov, com o aval da ONU. Outros líderes mundiais também poderiam participar. A eles caberia coordenar o governo provisório de Gaza, ainda sem integrantes conhecidos.
Também ainda não foram anunciados os nomes de países que integrarão a força de estabilização. Ninguém quer queimar o filme e países muçulmanos, mesmo alinhados com os Estados Unidos, sabem que seriam acusados de traição e usurpação sem garantias de que o processo conduzirá à criação de um Estado palestino. Mesmo que as houvesse, podem também se tornar alvo de ataques terroristas.
Todos esses desdobramentos da segunda fase foram aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU, o que lhes dá legitimidade internacional, mas o processo está enfrentando dificuldades nada surpreendentes.
‘CONGELAMENTO’ DE ARMAS
Os Estados Unidos exercem pressão dos dois lados, sobre os países muçulmanos com os quais têm diálogo e sobre Israel. Um dos empecilhos é a total oposição israelense a uma possível participação da Turquia na força de estabilização, o que abriria caminho para convencer outros integrantes a correr o alto risco de colocar tropas em Gaza.
As conversações “prosseguem”, disse o embaixador americano na ONU, Mike Waltz – uma forma diplomática de dizer que não existe acordo nenhum até agora.
O Hamas também já declarou que só aceitaria “armazenar” seus armamentos, não entregá-los. “A ideia do desarmamento total é inaceitável para a resistência”, disse Khaled Mashal, líder do Hamas que vive entre o Catar e a Turquia. “O que está sendo proposto é um congelamento ou armazenamento”.
Casos como o da hedionda morte da jovem Noa Marciano só podem fazer com que todos desejemos uma evolução no sentido de que nunca mais aconteçam atrocidades assim. Só muitos e muitos anos sem conflitos convencerão as duas partes de que é possível uma coexistência – e mesmo assim com extrema desconfiança. Mas aceitar que a outra parte não pode ser cancelada e, portanto, é preciso conviver com ela, é um passo importantíssimo.
As imensas dificuldades para chegar até lá ilustram a importância do papel exercido por Trump e seus negociadores, decididos a não deixar que o conceito de impossível atrapalhe seus planos. Esta é a chance, pequena, mas não tem outra.