Se nenhum incidente processual ocorrer nas próximas semanas, o julgamento de Jair Bolsonaro e de outros sete réus acusados de tramar um golpe de Estado em 2022 deve acontecer no início de setembro. Apesar das pressões do governo americano, particularmente do presidente Donald Trump, o processo entrou em sua etapa derradeira. Na segunda 14, a Procuradoria-Geral da República apresentou as alegações finais, ou seja, os argumentos invocados pelo Ministério Público para buscar a condenação dos envolvidos. Sem qualquer surpresa, o parecer aponta o ex-presidente como líder de um grupo que teria planejado e colocado em prática um ataque deliberado contra as instituições democráticas para se manter no poder, afirma que ele agiu em conluio com graduados oficiais das Forças Armadas e órgãos de inteligência e que, mesmo depois de ter deixado o governo, ainda teria incentivado a invasão dos prédios do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 8 de janeiro de 2023 como a última incursão de sua empreitada para tentar subverter o regime. Se condenado, a pena pode ser superior a quarenta anos de prisão.

Além de Bolsonaro, o procurador-geral Paulo Gonet pediu a condenação dos ex-ministros Walter Braga Netto (Casa Civil), Paulo Sérgio Nogueira (Defesa), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Anderson Torres (Justiça), do ex-comandante da Marinha Almir Garnier, do deputado federal Alexandre Ramagem, ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), e do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, para quem o parecer reservou uma novidade. Os réus são acusados de tentativa de golpe, abolição violenta do estado democrático, organização criminosa, dano qualificado e deterioração do patrimônio. Cid, por sua vez, assinou um acordo de delação para, em troca de benefícios, revelar detalhes da trama. Foi combinado que, ao final do processo, ele poderia receber um perdão judicial ou, na pior das hipóteses, cumprir dois anos de prisão — no máximo. O tenente-coronel, no entanto, pode ficar sem a recompensa. No seu parecer, Gonet classificou o comportamento de Cid como “contraditório”, “marcado por omissões” e resistente a cumprir “obrigações pactuadas” — e recomendou a revisão do prêmio.

Gonet descartou a possibilidade de concessão do prometido perdão judicial e propôs que a redução da pena do tenente-coronel — se houver — deverá ser calculada num “patamar mínimo”. Isso significa que Mauro Cid, se condenado, por hipótese, a vinte anos de prisão, o que seria uma pena relativamente leve, precisaria cumprir cinco anos em regime fechado — muito diferente do que ele havia planejado. Ao pleitear uma pena máxima de dois anos, o ex-ajudante de ordens tinha dois objetivos. O primeiro, óbvio, era escapar da cadeia. O segundo era continuar no Exército. Pelo regramento, o militar, em caso de condenação, tem a carreira interrompida e pode ser expulso da Força. Essa segunda punição, considerada como uma “morte funcional”, porém, só pode ser aplicada a quem recebe uma pena superior a dois anos. Se o STF acatar as observações do procurador, portanto, o sonho de Mauro Cid de voltar a vestir a farda após o julgamento será definitivamente sepultado.

O antigo braço direito de Bolsonaro, segundo a PGR, tentou blindar alguns envolvidos, escondeu informações sobre outros e ainda violou o sigilo previsto no acordo de colaboração. “A omissão de fatos graves, a adoção de uma narrativa seletiva e a ambiguidade do comportamento prejudicam apenas o próprio réu”, destacou o procurador. Reportagens de VEJA revelaram que Mauro Cid criou um perfil falso numa rede social e através dele trocou mensagens com o advogado de um dos acusados, nas quais acusou a Polícia Federal de direcionar e distorcer o conteúdo de seus depoimentos, atacou o ministro Alexandre de Moraes, relator do processo do golpe, e, confrontado com as evidências, ainda mentiu ao STF sobre o fato. “Ainda que a colaboração de Mauro Cid tenha, em certa medida, contribuído para o esclarecimento dos fatos sob investigação, persistem indícios de condutas possivelmente incompatíveis com o dever de boa-fé objetiva, consistentes, em grande parte, nas omissões do réu quanto a fatos relevantes”, acrescentou o procurador-geral.


Antecipando-se à provável argumentação das defesas dos acusados de que os pedidos de condenação foram baseados nas palavras de um delator que já se provou pouco confiável, Gonet afirmou que os próprios réus produziram provas robustas contra si. “A denúncia não se baseou em conjecturas ou suposições frágeis. A organização criminosa fez questão de documentar quase todas as fases de sua empreitada”, disse. A partir de ordens de busca e apreensão, lembra o procurador, foram encontrados, à revelia de Cid, planos golpistas, minutas sobre as medidas a serem efetivadas, planejamento sobre a eliminação de adversários, manuscritos, arquivos digitais, planilhas, discursos prontos para o pós-golpe e trocas de mensagem entre os principais atores da trama, que, somados a depoimentos de testemunhas, solidificaram a convicção de que por pouco, muito pouco, o país não atingiu o ponto de ebulição de um colapso institucional. Procurada por VEJA, a defesa do ex-ajudante de ordens não se manifestou sobre o teor das alegações da PGR.


A Procuradoria dedicou 137 das 517 páginas de suas alegações finais a Jair Bolsonaro. Além de se reunir com chefes militares, ministros e conselheiros para discutir detalhes do plano golpista, o ex-presidente, segundo Gonet, insuflou seu partido a questionar a higidez das urnas, pressionou o Ministério da Defesa a manter sob suspeição o sistema eleitoral, apoiou as manifestações que pediam intervenção das Forças Armadas e atuou para manter o país convulsionado o suficiente para que atos como os de 8 de janeiro servissem de pretexto para tentar destronar o presidente eleito. Os recorrentes discursos de Bolsonaro contra urnas eletrônicas e autoridades do Judiciário teriam por objetivo manipular a população, inflamar simpatizantes nas Forças Armadas e promover a “desestabilização da democracia” para que, no ato seguinte, o resultado das urnas fosse descartado e ele, ungido a permanecer no poder. A intentona só não se consolidou porque dois militares, os então comandantes do Exército, general Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Baptista Júnior, se recusaram a participar da trama. “As ações de Jair Bolsonaro configuraram uma articulação consciente para gerar um ambiente propício à violência e ao golpe”, concluiu Gonet.


O presidente Donald Trump voltou a se manifestar sobre as acusações após a Procuradoria apresentar as alegações finais. Na semana passada, ele havia criticado o STF e deixado claro que o tarifaço aplicado às exportações brasileiras, além de uma questão econômica, também era uma retaliação à situação jurídica do ex-presidente. Em novo pronunciamento, Trump ressaltou que não é amigo do capitão, “um bom homem”, e repetiu as críticas: “Eu acho que isso é uma caça às bruxas, muito lamentável e não deveria estar acontecendo. Ninguém está feliz com o que o Brasil está fazendo”. Bolsonaro retribuiu a gentileza: “Eu gosto dele (Trump), sou apaixonado por ele, pela política americana, pelo país que é os Estados Unidos”. As ameaças do presidente americano atormentam o setor produtivo, alimentam paixões no campo político, mas não influenciaram um milímetro sequer na tramitação do processo. E assim deve continuar.
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2025, edição nº 2953