Objeto principal do encontro entre Alexandre de Moraes e Claudio Castro, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, a ADPF das Favelas, estabeleceu regras e limites para a atuação das forças de segurança durante as incursões nas comunidades.
A ação foi ajuizada em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro, com o objetivo de diminuir a letalidade policial nas operações do país e entrou em vigor em 2020. Em abril deste ano, após ouvir diversas entidades de direitos humanos, governantes e representantes das polícias, o Tribunal validou algumas medidas e flexibilizou outras, na tentativa de garantir que o combate ao crime organizado ocorra de forma a proteger a população.
À época, a ADPF estava sob relatoria de Edson Fachin, mas precisou ser redistribuída no mês passado, depois que o ministro assumiu a presidência do STF, tornando-se responsabilidade de Moraes. “O ministro Fachin ouviu muita gente para calibrar as análises e propostas, bastante sensatas. Toda operação tem que ser planejada e tem que ser antecedida de alertas para que a população não seja apanhada no meio do fogo cruzado. E isso inclui preparar o serviço público essencial, como escolas e unidades de saúde, estruturas que precisam ser perturbadas o mínimo possível por atender crianças e doentes, os mais vulneráveis”, diz o ex-secretário nacional de Segurança Pública, coronel José Vicente da Silva Filho.
A medida, contudo, foi alvo de críticas por parte do governador do Rio, Claudio Castro (PL), após a megaoperação nos complexos da Penha e do Alemão, que vitimou 4 policiais e 117 suspeitos de envolvimento com o crime organizado. Castro classificou a ADPF como “maldita”. Segundo ele, a ação dificulta a ação da polícia.
Entre as regras adotadas estão:
Aviso prévio à população.
Isolamento de perímetro ao redor de escolas, creches e unidades de saúde.
Utilização de ambulâncias.
Preservação dos locais das ocorrências letais, sem que haja alterações no cenário.
Comunicação imediata às autoridades competentes, tais como comandante do batalhão e à corregedoria da PM ou ao delegado de sobreaviso.
Aviso ao Ministério Público, que se julgar necessário, pode designar promotor para acompanhamento da operação.
Presença de delegado de polícia para recolher provas, qualificar testemunhas e apreender objetos.
Remoção de cadáveres, com documentação fotográfica completa.
Autópsia obrigatória, em caso de mortes.
Acompanhamento das investigações por parte das corregedorias da PM e da Polícia Civil, com conclusão prevista em até 60 dias.
Especialistas em segurança pública ouvidos por VEJA apoiam as medidas. “Só na região da Penha há quase 50 escolas públicas, ou seja, estamos falando de um lugar do tamanho de uma cidade”, afirma José Vicente.
Para ele, a medida dá orientações importantes para as forças de segurança num estado onde a segurança pública é muito mais baseada em ações nas comunidades do que na prevenção e inteligência. ” Historicamente, se investiu pouco no trabalho de prevenção, e até por isso o crime se expandiu. E, no período da ADPF 635, as polícias fizeram mais de 4 mil operações no Rio. Imagina se não tivesse essa restrição tão reclamada?”, diz Silva Filho, acrescentando que não se vê tantas operações assim em outros estados do país. “A operação é uma excepcionalidade, uma anomalia no dia a dia da segurança pública. Mas no Rio de Janeiro não funciona assim”, ressalta o ex-secretário.
Já Daniel Hirata, sociólogo e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF), destaca que as limitações não afetaram significativamente a ação policial. “ No período de maior vigência, houve aumento das operações e diminuição das mortes. A criação de parâmetros protege os policiais que agem dentro da lei, em detrimento aos que não o fazem. Não consigo ver a relação entre a ADPF e o favorecimento ao crime”, diz.
Atribuição
Por outro lado, a ação do STF desperta críticas. José Vicente pondera que o STF não é um órgão do executivo e que, portanto, não tem atribuição para legislar sobre a abordagem policial. “Não é papel do Supremo se meter em políticas públicas de uma secretaria de um estado. Outro ponto negativo é a ADPF entrar numa área muito técnica do trabalho das polícias, embora ela tenha um conteúdo político também”, ressalva ele. O ex-secretário nacional de segurança questiona ainda o fato de as regras serem impostas a apenas um estado da Federação. “Por que só se trata do Rio de Janeiro? A Bahia não tem crise de territórios ocupados, mas conta com uma violência exponencialmente maior. O Ceará também faz parte dessa trinca infernal de segurança”.