A prisão dos generais Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira marca um ponto fora da curva na vida institucional brasileira. Nunca antes oficiais de quatro estrelas haviam sido detidos por participação em uma tentativa de golpe conduzida ao lado de um capitão reformado. O fato rompe uma longa tradição de silêncio, conivência e impunidade que acompanhou, por mais de um século, os sobressaltos políticos envolvendo setores do Exército.
Ambos foram conduzidos na tarde desta terça-feira (25) para a sede do Comando Militar do Planalto, em Brasília, como mostrou o colega da VEJA, Nicholas Shores, que registrou em sua reportagem as penas aplicadas pela Primeira Turma do Supremo e o deslocamento dos militares ao quartel.
O Brasil sempre conviveu com a sombra da tutela militar. Desde a década de 1920, passando por 1937, 1945, 1955 e chegando ao golpe de 1964, as Forças Armadas estiveram no centro das principais rupturas políticas do país. A ditadura que se instalou em 1964 produziu o período mais sombrio do século passado, embora ainda inferior, em escala histórica, às violências estruturais da escravização e ao genocídio dos povos negros e indígenas. O país nunca realizou uma verdadeira justiça de transição, tampouco reparou plenamente essas feridas. O resultado foi a manutenção de uma cultura de exceção que se reproduziu como herança.
A prisão de dois generais não é um episódio trivial. Ambos eram considerados quadros respeitados e tecnicamente preparados. Frequentemente descritos como oficiais com formação sólida, defensores da pauta ambiental e atentos aos desafios estratégicos do país. Essa imagem ruiria quando aderiram sem hesitação ao radicalismo de Jair Bolsonaro. No caso de Heleno, é ainda mais emblemático. Ele sempre rejeitou críticas à ditadura, defendendo a versão mais dura do regime, e integrou ambientes influenciados pela ala mais ideológica do Exército.
O desfecho atual revela algo mais profundo. Pela primeira vez, a República impõe responsabilização a generais que tentaram intervir no processo democrático. Não se trata apenas de um caso policial ou de uma disputa política contemporânea. É um acerto de contas tardio com uma tradição golpista que atravessou gerações das elites brasileiras. Ao apostar no tumulto institucional de 2022 e 2023, esses oficiais repetiram um padrão histórico. A diferença desta vez é que perderam.
O atraso dessa reação institucional é evidente. A ausência de responsabilização após 1964 permitiu que a cultura da intervenção sobrevivesse intacta. A falta de reparação adequada após a escravização produziu desigualdades e violências que se perpetuam até hoje. A tentativa golpista recente é apenas mais um capítulo dessa mesma lógica de poder, que sempre partiu de setores da elite brasileira quando sentiram ameaçados seus espaços de influência.
O país assiste a um gesto simbólico que finalmente rompe essa linha de continuidade. Não elimina os riscos futuros nem encerra a discussão sobre o papel das Forças Armadas. Mas coloca, pela primeira vez, dois oficiais do mais alto escalão diante da Justiça por atentarem contra a democracia.
A justiça, ainda que tardia, dá seus primeiros sinais de reparação quando o país revisita histórias como a de Chael Charles Schreier. Preso em 22 de novembro de 1969 e morto sob tortura na Vila Militar do Rio de Janeiro, Chael teve sua morte oficialmente comunicada à família em 25 de novembro de 1969, junto a um caixão lacrado sob vigilância militar que impediu até o rito judaico tradicional. As imagens que comprovam sua violência foram encontradas décadas depois pela cineasta Anita Leandro no acervo do DOPS, e hoje estão disponíveis na web. Elas desmontam de forma incontestável a versão oficial da época e seguem como testemunho da brutalidade estatal.
Evocar Chael neste 25 de novembro de 2025, data em que dois generais de quatro estrelas foram presos por tentativa de golpe, é reconhecer que a democracia brasileira avança, mesmo que lentamente, no caminho da responsabilização. Se há 56 anos famílias recebiam corpos marcados pela repressão, hoje figuras outrora intocáveis começam a responder perante a lei por atentarem contra a Constituição. O país que ainda deve justiça plena às vítimas da ditadura precisa transformar esse paralelo em compromisso permanente para que nunca mais existam versões forjadas, juventudes silenciadas ou poder fardado acima da legalidade.
O Brasil, enfim, começa a passar a limpo sua própria história. Ainda atrasado. Ainda incompleto. Porém, necessário.