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O operário escritor: ‘Sonhamos com o paraíso e nem chegamos ao purgatório’

Há um personagem de importância histórica no Brasil da segunda metade do século XX que talvez não tenha ocupado tanto quanto deveria as páginas da literatura. É o operário. O migrante que deixou sua terra natal para fazer a vida e a indústria em polos como o ABC paulista.

Mas a obra de Roniwalter Jatobá não só preenche essa lacuna como enseja uma espécie de reparação na crônica nacional. E ele tem, digamos, lugar de fala. Pois é um operário que se transformou em escritor.

Natural de Minas Gerais, Jatobá cresceu na Bahia e chegou a São Paulo em 1970. Em um ABC em ebulição, foi trabalhar como metalúrgico. Depois atuou como gráfico – inclusive na Editora Abril – até que se formou em jornalismo e migrou para as redações de jornal.

E foi a partir desse trajeto que o escritor lavrou os textos e livros que lhe garantem hoje o posto de uma das principais vozes da nossa literatura a acompanhar e a registrar as dores e os sonhos do proletariado.

Agora, em nova roupagem, três de suas obras voltam às livrarias pelas mãos da editora Boitempo. Seja nos contos de Sabor de Química e Crônicas da Vida Operária, seja nas novelas de Paragens, a prosa de Jatobá nos transpõe à paisagem íntima de um grupo social que enxergou em São Paulo a Canaã das oportunidades – não raro sofrendo inúmeras decepções entre a linha de montagem e a casa de pensão na periferia.

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Obras de Roniwalter Jatobá (Boitempo Editorial)

Em um registro que ora se detém nos passos, nas reminiscências e nas expectativas do trabalhador, ora se acelera para acompanhar o ritmo vertiginoso da cidade, seus livros falam de sangue, suor e doenças no cotidiano insalubre das fábricas, de pequenas e grandes utopias familiares, da odisseia de quem um dia partiu e, décadas depois, quis voltar à sua terra, também metamorfoseada pelos supostos ventos do progresso – um itinerário exposto de forma magistral na novela Tiziu.

Em entrevista a VEJA, o escritor de passado operário reflete sobre a vida, as lutas e as conquistas do proletário ontem e hoje. Com a palavra, Roniwalter Jatobá.

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O autor Roniwalter Jatobá, autor de livros como ‘Sabor de Química’Foto: Acervo/Reprodução

Olhando em retrospecto, o que o senhor enxerga como a principal vitória da classe trabalhadora e qual a derrota ainda persistente quando se contrasta a década de 1970 com o cenário atual? O operário venceu?
Sinceramente, não saberia dizer se houve alguma vitória para esse segmento da população. Sei que sonhávamos com o paraíso e nem chegamos ao purgatório. Não podemos esquecer que meus escritos completam quase meio século e a realidade do país mudou muito, para melhor, apesar de tantos administradores medíocres. Tivemos muitos avanços, mas convém lembrar que as minhas personagens eram migrantes rudes e sem formação alguma.

Era uma mão de obra barata de que os grandes centros urbanos precisavam na década de 1970 do “milagre econômico”, gente para abrir buracos para construção do metrô e para erguer prédios suntuosos. Hoje, certamente essas pessoas só poderiam morar em favelas, como as milhares que vivem miseravelmente nas periferias de todas as cidades brasileiras.

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Sua obra fala também das utopias que construímos: a São Paulo das oportunidades futuras ou mesmo a terra natal de um passado afetuoso, ainda que difícil. Vivemos sempre nesse dilema temporal e espacial para abrandar os sofrimentos do presente?
Sim. Por isso, creio que há hoje um retorno significativo de migrantes para a terra natal. Em suas regiões de origem, houve avanços. Talvez por isso o enredo de muitas histórias dos meus livros traga essa volta. A volta para encontrar a si mesmo em um lugar que não é mais o mesmo. Veja o que acontece quando Édipo volta a Tebas, quando Orestes volta a Argos. Nos gregos, em toda literatura de ficção, o ser humano não quer voltar, mas volta. É empurrado para trás, para buscar a si mesmo.

O senhor acredita que a literatura ainda tem o poder de engajar a classe trabalhadora? Hoje, andando de trem e metrô pela cidade, vemos o operário do século 21 preso aos celulares e às redes sociais. Há espaço para a leitura em meio às telas?
Não vivemos num mundo fácil para a literatura. A concorrência é grande, mas ela tem seu espaço. O ato de ler poesia e prosa é uma das ocupações mais estimulantes e enriquecedoras do espírito humano. Para o escritor Mario Vargas Llosa, a literatura é uma atividade insubstituível para a formação de cidadãos na sociedade moderna e democrática. “Por essa razão, ela deveria ser semeada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas educacionais”, disse o escritor peruano.

Qual é a importância de preservar a memória da classe operária, como faz em seus livros, tendo em vista as mudanças que as tecnologias de automação e inteligência artificial já começam a impor na indústria e no mercado de trabalho?
O operário, como personagem, foi pouco retratado na nossa literatura. E o operário iletrado, menos ainda. Antes dos meus textos, dizem os críticos, o trabalhador urbano só podia ser entrevisto em um ou outro romance – O cortiço, de Aluísio Azevedo, de 1890, Os Corumbas, de Amando Fontes, de 1933, O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, de 1935 ou em um ou outro conto de autores como Mário de Andrade e Alcântara Machado.

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Por que isso acontece? Talvez porque entre muitos escritores, em geral oriundos da classe média ou rica, poucos viveram a experiência operária. Ou seja, morar na periferia e trabalhar numa fábrica. É, enfim, a memória registrada sobre a vida que conheci como nordestino migrante, motorista de caminhão, trabalhador de construção civil e fábrica, buscando condições melhores em São Paulo. Não tive nenhuma intenção de tratar cientificamente fatos e personagens, não levantei teses sociais. Minha partida, claro, foi a experiência real, porém não escrevi como historiador, antropólogo ou sociólogo, muito menos cultivando engajamento – e sim como escritor.

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