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O novo round na batalha dos vapes

Para minha surpresa, está se tornando quase uma obrigação anual publicar ao menos um artigo sobre os vapes (cigarros eletrônicos ou dispositivos eletrônicos para fumar) — uma tradição que já mantenho pelo terceiro ano consecutivo.

Na última vez em que tratei do assunto, o Brasil passava por uma consulta pública realizada pela Anvisa para decidir se os cigarros eletrônicos deveriam continuar proibidos ou se deveriam ser regulamentados. O entendimento da agência foi de que, com base na literatura disponível e nos riscos decorrentes da regulamentação, tanto os produtos quanto a publicidade deveriam permanecer proibidos.

Ao final, fiz um alerta que, de certa forma, acabou sendo profético: “Não sei se manter a proibição foi a decisão correta — de fato, não tenho uma opinião formada —, mas, já que ela foi tomada, não devemos parar por aqui. Se outras ações não forem implementadas para coibir a comercialização clandestina, corremos o risco de que tudo seja em vão”.

Neste ano, a CNN Brasil publicou duas matérias — uma escrita e outra em formato audiovisual — intituladas “Apesar da proibição da Anvisa, crescem as vendas de cigarros eletrônicos”. Ali destaca-se que, em 2024, houve um aumento alarmante de 153% nas apreensões de cigarros eletrônicos em rodovias brasileiras. A Polícia Rodoviária Federal confiscou mais de 620 mil unidades ilegais, em comparação com cerca de 240 mil no ano anterior.

E no que talvez este seja o ponto mais preocupante, Alessandra Bastos, ex-diretora da Anvisa e atual consultora da British American Tobacco — uma das cinco maiores empresas do setor, que comercializa desde cigarros até vapes e chicletes de nicotina —, afirmou que, além do crescimento observado, estabeleceu-se um comércio ilegal com fábricas clandestinas no território nacional, e que, em alguns produtos, foi constatada a presença de anfetamina e THC.

A reportagem também ouviu outros especialistas, como Fred Monteiro, diretor regional da British American Tobacco, que destacou que, enquanto o Brasil segue uma lógica proibicionista, quase 100 países combinam medidas restritivas ao cigarro tradicional com a oferta de alternativas menos danosas à saúde. Também foi consultado José Roberto Santin, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia, que apontou que a regulamentação é, possivelmente, a saída mais adequada.

Admito que, ao ler a matéria, fui inundado por reflexões contraditórias. Se a defesa da regulamentação ao menos reconhecia que o problema estava fora de controle, o discurso alinhado aos interesses da indústria do tabaco me parecia errado — tanto moral quanto tecnicamente.

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Cigarros e câncer

Adianto que, para esta seção, baseei-me nos artigos The History of the Discovery of the Cigarette–Lung Cancer Link: Evidentiary Traditions, Corporate Denial, Global Toll e Inventing Conflicts of Interest: A History of Tobacco Industry Tactics.

O câncer de pulmão, uma doença relativamente rara até o fim do século 19, começou a se tornar mais e mais comum no início do século 20, intrigando epidemiologistas. Na década de 1920, cirurgiões levantaram hipóteses variadas sobre a causa da mudança, incluindo o fumo, a poeira de asfalto das ruas recém-pavimentadas, a poluição industrial do ar e os efeitos tardios da exposição a gases venenosos durante a Primeira Guerra Mundial.

Nas décadas seguintes, quatro linhas distintas de evidências convergiram para estabelecer o cigarro como a principal causa do câncer de pulmão: estudos populacionais (pesquisadores observaram um aumento paralelo tanto no consumo de cigarros quanto na incidência de câncer de pulmão); experimentos em animais; os efeitos observados do tabaco nas células; e a constatação da presença de cancerígenos na fumaça do tabaco.

Em 1953, o estudo “Experimental Production of Carcinoma with Cigarette Tar” demonstrou que o alcatrão do cigarro podia induzir tumores em camundongos, reforçando a associação entre fumo e câncer de pulmão. O estudo abalou a confiança pública e provocou queda nas ações das fabricantes de tabaco. Em resposta, os CEOs das seis maiores empresas de tabaco dos EUA se reuniram no Plaza Hotel, em Manhattan, contratando John W. Hill, presidente da maior agência de relações públicas do país, a Hill & Knowlton.

Hill propôs explorar a autoridade da ciência, sem negar diretamente as evidências, defendendo a necessidade de “mais pesquisas” e financiando estudos para criar a impressão de uma “grande controvérsia científica”.

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A Hill & Knowlton compilou um compêndio de declarações de médicos e cientistas que contestavam a ligação entre o cigarro e o câncer de pulmão. Em um memorando interno, Hill observou que, diante da gravidade das acusações contra os cigarros e da ampla cobertura da imprensa, estava se desenvolvendo “uma histeria de medo em todo o país, que não parece diminuir em breve”.

Dessa percepção nasceu a cartada de mestre da indústria: a criação do Tobacco Industry Research Committee (TIRC) — uma entidade de pesquisa supostamente independente, mas totalmente controlada pelos fabricantes de tabaco. Apresentada como uma iniciativa científica legítima, o TIRC tinha seus objetivos subordinados às metas de relações públicas, funcionando, na prática, como um instrumento de manipulação da opinião pública.

Com isso, a indústria conseguiu sustentar a percepção de uma controvérsia científica, reverter o declínio do consumo, aumentar as vendas e, consequentemente, expor mais consumidores a um risco elevado de câncer.

Enquanto promovia essa fachada de debate científico, documentos internos demonstravam que os executivos tinham plena consciência de que seus produtos eram, de fato, um dos principais causadores de câncer.

Em 1947, seis anos antes da fatídica reunião dos CEOs, o químico da Universidade do Estado de Ohio John B. Fishel, em relatório interno para a Lorillard — fabricante dos cigarros Old Gold —, reconheceu a presença de Benzo[a]pireno nos alcatrões do tabaco, um potencial cancerígeno.

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No mesmo ano em que o TIRC foi fundado (1953), o químico Claude Teague afirmou à alta direção da RJ Reynolds, fabricante dos cigarros Camel, que o aumento paralelo do consumo de cigarros e da incidência de câncer levava à suspeita de que o tabaco era “um fator etiológico importante na indução de câncer primário de pulmão”.

Como descrito no relatório “Tobacco Industry: Decades of Deception and Duplicity”, publicado pela OMS, mesmo após o consenso global sobre o controle do tabaco alcançado em 2004 por meio da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (WHO/FCTC), a indústria continuou a atuar para enfraquecer políticas de controle, mostrando que proteger essas medidas depende de expor suas táticas.

Durante as décadas de 1950 e 1960, os principais argumentos da indústria eram que “fumar não fazia mal” e que “o fumo/nicotina não era viciante”. Para sustentar essas afirmações, eles ocultaram e suprimiram evidências sobre o potencial viciante do cigarro e seu papel na indução de câncer.

Ainda nesse período, diante das evidências científicas sobre os riscos do tabagismo, a indústria, de forma camaleônica, criou uma nova roupagem para seus produtos: as versões light ou mild, apresentadas como opções mais seguras, com menores concentrações de nicotina e resíduo total. Apesar do apelo de serem mais saudáveis, esses cigarros apresentavam os mesmos riscos. Projetados para fornecer doses menores de nicotina, levavam os fumantes a fumar mais, por mais tempo e inalar mais profundamente para alcançar o mesmo efeito do cigarro tradicional.

Em 1998, as principais empresas de tabaco dos EUA foram responsabilizadas por enganar o público quanto aos danos causados pelos cigarros e à sua natureza viciante. Em 2006, grandes companhias multinacionais de tabaco foram consideradas culpadas de fraudar o público sobre a segurança de seus produtos e de realizar marketing voltado a crianças.

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Hoje, a indústria do tabaco segue em uma nova missão: promover um “mundo sem fumaça”, supostamente incentivando fumantes a migrar para cigarros eletrônicos e produtos de tabaco aquecido, ao mesmo tempo em que continua promovendo os cigarros tradicionais, inclusive entre jovens.

A Philip Morris investiu US$ 960 milhões ao longo de 12 anos para criar a Foundation for a Smoke-Free World, alegando querer acabar com o tabagismo. No entanto, a empresa informou a seus investidores que as vendas de cigarros continuariam sendo seu principal negócio.

Em países de baixa e média renda, a empresa processa governos que adotam políticas antifumo e intensifica a publicidade de HTPs (produtos de tabaco aquecido). A British American Tobacco, por sua vez, lançou a iniciativa A Better Tomorrow para promover produtos de vaporização e retomar o marketing esportivo por meio de patrocínios na Fórmula 1 e MotoGP.

Mais de 300 organizações, incluindo a OMS, denunciaram a fundação da Philip Morris e solicitaram que os governos não estabelecessem parcerias com ela.

Novos relatórios da OMS

Em junho deste ano, a OMS publicou a décima edição do “WHO report on the global tobacco epidemic”. Ao tratar dos produtos de tabaco aquecido (HTPs) e dos sistemas eletrônicos de liberação de nicotina (ENDS, sigla em inglês para Electronic Nicotine Delivery Systems, categoria que inclui os cigarros eletrônicos) e nos ENNDS (produtos equivalentes, mas sem presença de nicotina), o relatório lembra que a indústria do tabaco tem promovido essas tecnologias como forma de apoio à cessação do tabagismo e de redução de danos à saúde, mas o faz sem base em evidências independentes e de qualidade. O texto afirma ainda que cigarros eletrônicos contendo nicotina “são altamente viciantes e prejudiciais à saúde”.

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Além disso, como a publicidade desses produtos é direcionada aos jovens, incluindo estratégias em redes sociais com foco em crianças e adolescentes e uma ampla variedade de sabores atrativos, é necessário coibi-la.

Poucos meses depois, a OMS publicou outro relatório, o “WHO Global Report on Trends in Prevalence of Tobacco Use 2000-2024 and Projections 2025-2030”, sobre o consumo de produtos de tabaco no mundo.

Ao analisar o uso de cigarros eletrônicos — com base em 85 países, equivalentes a 75% da população adulta global — estima-se que o uso global de cigarros eletrônicos entre pessoas com 15 anos ou mais seja de 1,9% (2,3% entre homens e 1,5% entre mulheres), equivalente a pelo menos 86 milhões de indivíduos. A região das Américas apresentou a maior prevalência média (4,8%), seguida pela Região Europeia (4,6%).

Entre adolescentes de 13 a 15 anos, com base em 123 pesquisas cobrindo 51% da população global, a prevalência estimada de uso de cigarros eletrônicos foi de 7,2% (8,6% meninos, 5,7% meninas), cerca de 14,7 milhões de adolescentes, sendo improvável que o número real seja inferior a esse. A cobertura das pesquisas é maior no Pacífico Ocidental (82% dos países) e na Europa (89%), mas limitada no Sudeste Asiático e na África. Ao comparar adultos e adolescentes, em 63 países, a prevalência entre adolescentes foi, em média, nove vezes maior que entre adultos.

Segundo os autores, embora o achado seja preocupante, ele não surpreende, considerando que a indústria direciona campanhas agressivas ao público jovem, especialmente em canais digitais pouco regulados.

É importante também mencionar algumas limitações observadas na pesquisa. Por exemplo, o modelo utiliza pesquisas populacionais como base de dados, sendo que diversos fatores podem afetar a qualidade das informações: formulação das perguntas, honestidade dos respondentes (influenciada pelo modo de coleta e viés de desejabilidade social), entre outros.

Apesar dessas limitações, os achados evidenciam uma realidade preocupante: jovens que cresceram cientes dos riscos do cigarro tradicional estão cada vez mais atraídos pelos sabores frutados dos cigarros eletrônicos, abrindo caminho para a dependência de nicotina e para o desenvolvimento de doenças cardíacas e pulmonares.

Mais uma vez, admito que não tenho uma opinião totalmente formada no debate sobre proibir ou regular. Acredito que a proibição total, desde que acompanhada de fiscalização rigorosa e punição severa, talvez pudesse reduzir significativamente o problema.

Dada a facilidade com que é possível adquirir um cigarro eletrônico, tanto em lojas físicas quanto online — fiz até um teste em um site para verificar se solicitariam comprovante de idade, mas não houve nenhuma restrição —, acredito que uma regulamentação mais rigorosa poderia ser factível e gerar impacto maior do que as medidas atuais.

O modelo que considero mais interessante, e que provavelmente desagradaria à indústria, seria semelhante ao adotado na Austrália, onde a venda só é permitida em farmácias: menores de 18 anos necessitam de prescrição médica, enquanto indivíduos com 18 anos ou mais podem adquirir produtos com concentrações de nicotina de até 20 mg/mL.

Caso fosse necessária alguma flexibilização, a abordagem ideal seria seguir medidas similares às aplicadas aos cigarros tradicionais, como informar de forma clara que o produto pode causar danos à saúde, padronizar embalagens para torná-las menos atrativas, proibir quase todos os sabores para evitar experimentação por curiosidade, banir publicidade direcionada a jovens ou a qualquer público não tabagista e aumentar impostos, exceto para pessoas com recomendação médica para auxílio na cessação do cigarro tradicional.

Sinceramente, duvido que a maioria dessas medidas fosse aprovada ou implementada, e certamente haveria argumentos contrários sobre sua viabilidade. Contudo, uma coisa é certa: continuar com medidas que, na teoria, parecem rigorosas, mas que na prática não têm efeito real, apenas mantém o status quo — produtos vendidos ilegalmente, para qualquer pessoa, sem controle de idade e sem conhecimento claro de sua composição.

Mauro Proença é nutricionista

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