Qual a chance de uma cidade no norte paulista, mais conhecida pelo cultivo da cana-de-açúcar, elaborar um vinho de alta qualidade com a Sangiovese Grosso, a mesma variedade que produz o famoso Brunello? Dentro da sua propriedade em Ituverava, a 100 quilômetros de Ribeirão Preto, o advogado e agricultor italiano Luiz Roberto Lorenzato di Ivre investiu muitos anos para demonstrar que a ideia não era uma completa maluquice. Orgulhoso, afirma ter recebido um grande selo de aprovação em março de 2024, quando levou um dos vinhos produzidos ali para um jantar em Roma com Ottaviano De’Medice, o Grão Duque da Toscana. “Em determinado momento, ele elogiou o vinho, achou que estávamos tomando um Marques de Frescorbaldi. Quando revelei que era um brasileiro, ficou chocado!”, contou Luiz Roberto à coluna AL VINO. Em tempo, a família Frescobaldi tem tradição na produção de vinhos na Toscana desde a Idade Média, com mais de trinta gerações de envolvimento na vinificação.
Não foi apenas o Grão Duque da Toscana que ficou surpreso com a produção de Ituverava. Recentemente, fui conhecer o Arduino, Etichetta Blu, o vinho ícone da Marchese di Ivrea, a vinícola de Luiz Roberto. Confesso que tenho alguma dificuldade com alguns Syrah superportentes produzidos de São Paulo até a Bahia. A prova foi feita no mezanino do D.O.M., de Alex Atala, onde eu e Luciano Freitas, o sommelier do restaurante, ficamos surpresos com a fluidez, pureza de fruta e sutileza de sabor. Repetimos a degustação para tentar entender como aqueles 15,8 % de álcool anunciados no rótulo não se sobressaia, tampouco a madeira, que está bem integrada. Provamos a safra 2023, um rótulo que não sai da vinícola sem pelo menos um ano de barricas de carvalho e mais seis meses na cave. O vinho que custa R$ 240 pode tranquilamente descansar mais cinco anos em qualquer adega, mas está pronto para ser bebido. Depois da prova, o D.O.M. passou a cogitar comprar um bom lote do produto.
COMO TUDO COMEÇOU
O estalo para o milagre de Ituverava com a Sangiovese surgiu quando Luiz Roberto viu uma festa de Santo Antônio em 13 de junho, no seu antigo haras, ir a ruína porque os convidados não aguentaram o frio de 4 graus que fazia nas noites de inverno por lá. No entanto, durante o dia, a temperatura subia a agradáveis 25 graus. Foi então que ele resolveu transformar o haras da família em um vinhedo. “Naquele momento tive um estalo: aquela inversão térmica era perfeita para plantar uva”, conta. Colegas e proprietários de fazendas vizinhas da região duvidaram. “Alguns ameaçaram rasgar o diploma da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo), caso eu conseguisse colher um cacho que fosse”, lembra.
Desafiado e determinado, o italiano do Piemonte seguiu para Europa de onde trouxe mudas da Sangiovese Grosso. Buscou o mesmo fornecedor da Antinori, vinícola de mais de 600 anos da Toscana. A experimentação de adaptar essas uvas para o clima de Ituverava começou há quase duas décadas, quando ainda havia pouco conhecimento por aqui a respeito da dupla poda, tipo de manejo que revolucionou nos últimos anos a viticultura nacional. A técnica consiste em inverter o ciclo da videira para que a colheita seja feita no inverno, quando na região Sudeste há menos chuva. Sem saber disso, Luiz Roberto teve que se virar por conta própria. A solução surgiu quando observava uma paineira centenária da propriedade que estava em flor, entre dezembro e abril, um período que marca a transição para a estação seca e a chegada do outono. Ali, decidiu o melhor momento para plantar e podar. Em julho e agosto de 2006 colheu sua primeira safra de uvas. “Eu não tinha a menor ideia do que o Murilo Regina estava fazendo na Serra da Mantiqueira, fui maluco ou um visionário mesmo”, diz, referindo-se ao criador da técnica da dupla poda.
Do antigo haras restou apenas a casa rosada, sede da fazenda que hoje comporta a loja e o restaurante do enoturismo da vinícola Marchese di Ivrea, rodeada hoje por 11 hectares de vinhedos de Nebbiolo, Sangiovese Grosso, Moscato Giallo e, mais recentemente, testes com as variedades portuguesas Arinto, Trincadeira e Aragonez. O manejo é feito 65% com produtos biológicos, diferentemente de boa parte da dupla poda, que não consegue escapar dos venenos (chamados agrodefensivos) para colher frutas sadias. “Nossa produtividade aumentou em 30% desde que adotamos os biológicos e nossa meta é chegar a 90% com esse tipo de produto para evitar pragas e doenças”, conta Luiz Roberto.
Segundo ele, as borrifadas com Dormex, produto responsável por colocar a planta em dormência, simulando o inverno dos países frios, tão usada na poda invertida e absolutamente proibida na Europa, por contaminar o solo, também não é necessário por lá. “Estamos há 700 metros de altitude, temos frio suficiente para a planta se desenvolver. A impressão que tenho é que o clima aqui é ainda melhor do que em Montalciono para o desenvolvimento da Sangiovese”, afirma. Exagero típico de um bom advogado, diga-se. Alguns juristas têm mesmo argumentos de defesa únicos. Haja vista que Ruy Barbosa garantiu que o Amazonas era maior do que o Nilo, em 1921, criando um famoso embate científico na ocasião.
A vinícola atualmente produz 5.000 por safra e está nos planos outra ousadia. “Fiz um Super Paulista, como um super toscano, só que no lugar da Cabernert Franc, o meu vinho tem Nebbiolo e Sangiovese”, informa Luiz Roberto. “Como bom italiano, me recuso a ter uvas francesas na minha propriedade.” Ele garante que o corte produz um vinho encorpado, perfeito para acompanhar a bisteca fiorentina que serve aos seus clientes de enoturismo. Para visitar a Marchese de Ivrea é preciso reservar. O passeio acontece aos sábados, custa R$ 200, inclui visita aos vinhedos, degustação e almoço, com a famosa bisteca fiorentina inclusa. O dia termina na lojinha, onde podem ser comprados os vinhos, que também estão disponíveis online no site da vinícola.
É preciso mesmo ver para crer. Pode acreditar: basta colocar na boca o vinho feito com a Sangiovese de Ituverava para ter a mesma sensação de surpresa do Grão Duque da Toscana.