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O Mapa como Destino?

A relação entre geografia e resultados econômicos sempre foi objeto de debates intensos, atravessando séculos e perspectivas. Sabe-se que Montesquieu, o grande filósofo iluminista, escreveu que “as pessoas são… mais vigorosas em climas frios (contrariamente ao que acontece em climas amenos)… Essa superioridade de força deve produzir diversos efeitos; por exemplo, maior ousadia, isto é, mais coragem; um maior senso de superioridade…”. Hoje, essa afirmação, além de soar politicamente incorreta, parece carecer de qualquer sentido prático.

A nova economia institucional também foi enfática com relação a essa tese. Os renomados economistas Daron Acemoglu e James Robinson, em seu influente livro Por que as Naçoes Fracassam (2012), argumentam que “nem a cultura, nem a geografia, nem a ignorância podem explicar os caminhos divergentes das nações. Precisamos olhar para as instituições [econômicas e políticas] para encontrar a resposta” (p. 73). Ao longo da obra, eles demonstram como países com geografia praticamente idêntica — como as Coreias ou regiões como Sonoma, nos Estados Unidos e no México — podem apresentar resultados completamente distintos, dependendo das instituições vigentes.

Mas essa constatação não implica que a geografia seja totalmente irrelevante. Ela pode não ser determinista, mas exerce influência significativa, tal como ocorre com a cultura. O economista alemão Stefan Voigt, em seu respeitado manual de Economia Institucional (2019), dedica atenção não apenas às instituições formais, mas também às informais, e inclui aí a análise do impacto geográfico. Ele apresenta exemplos elucidativos: em regiões de clima ameno durante todo o ano, não há incentivo natural para estocar alimentos para o futuro, ao contrário do que ocorre em áreas com estações bem definidas. Esse simples fator, repetido ao longo de gerações, molda hábitos de poupança do povo – cruciais no resultado macroeconômico de qualquer país. 

O relevo também tem seu papel. A topografia de um país influencia a facilidade de construir obras de infraestrutura, conectar regiões internas, estabelecer comércio exterior ou, ao contrário, promover isolamento atrás de barreiras naturais como cadeias de montanhas. Jared Diamond, no best-seller Guns, Germs, and Steel, oferece um exemplo clássico: o chamado Crescente Fértil foi berço das primeiras grandes civilizações com economias complexas na humanidade graças à agricultura. Durante a Revolução Neolítica — quando sociedades de caçadores-coletores se transformaram em comunidades pastoris —, os habitantes dessa região da Eurásia desfrutaram de vantagens singulares, como abundância de plantas comestíveis e mamíferos domesticáveis. Além disso, as condições climáticas semelhantes ao longo do continente facilitaram a rápida difusão de inovações agrícolas. Essas vantagens permitiram a prosperidade da região, o crescimento populacional e o surgimento precoce de inovações tecnológicas.

Ao longo das últimas décadas, um vasto conjunto de estudos empíricos tem demonstrado que o impacto da geografia, embora muitas vezes mediado por instituições, pode ser direto e mensurável. Entre esses trabalhos, um dos que considero mais instigantes, foi conduzido por Alberto Alesina, Paola Giuliano e Nathan Nunn, e publicado em 2013 no conceituado periódico Quarterly Journal of Economics. Os autores investigaram como o relevo e as técnicas agrícolas associadas influenciaram historicamente o papel feminino nas sociedades. Em regiões montanhosas ou acidentadas, a agricultura desenvolveu-se com base no uso da enxada, em áreas menores, o que não exigia força física extrema e permitia maior participação das mulheres nas tarefas agrícolas. Nessas áreas, a organização do trabalho favorecia intervalos durante a jornada, possibilitando que as mulheres amamentassem e cuidassem dos filhos.

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Em contrapartida, em vales e planícies mais amplas, o cultivo em grandes extensões demandava o uso do arado, frequentemente puxado por animais de grande porte, como bois e búfalos. Essa atividade requeria força física considerável, favorecendo a predominância masculina no trabalho agrícola. Como a agricultura era, durante séculos, a principal ocupação econômica da maioria da população, a divisão sexual do trabalho nessas regiões consolidou papéis sociais distintos: nas áreas de arado, as mulheres tendiam a ocupar funções domésticas e a ter menor independência econômica; já nas áreas de enxada, sua participação ativa no trabalho agrícola contribuiu para um papel mais autônomo e participativo na vida social e econômica.

O estudo de Alesina e seus colegas revelou ainda que esses padrões históricos deixaram marcas profundas: os estereótipos sobre o papel da mulher, formados há séculos, permanecem presentes até hoje nas crenças e valores das sociedades analisadas. Trata-se de um exemplo marcante de como características geográficas podem, por meio de um encadeamento de fatores econômicos e culturais, influenciar a organização social no longo prazo.

Pessoalmente, considero essa literatura científica fascinante. Como economista que valoriza profundamente o papel das regras, das normas e do direito nos resultados econômicos, não posso subscrever integralmente a visão de autores como Daron Acemoglu, James Robinson e Simon Johnson — ganhadores do Prêmio Nobel de Economia de 2024 — de que mesmo o impacto da geografia se dá de forma determinista via instituições. Mas o que parece claro é que a geografia tem, sim, um efeito relevante exatamente na criação de normas e valores, informais e formais. O mecanismo preciso pelo qual isso ocorre ainda carece de elucidação completa, e é justamente isso que os economistas institucionalistas – juntamente com cientistas sociais de diversas outras áreas (geógrafos, sociólogos, antropólogos etc.) estão tentando compreender hoje.

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O mais instigante na ciência é que ela não oferece verdades absolutas e definitivas. Novas perguntas surgem continuamente, acompanhadas de hipóteses a serem testadas com métodos cada vez mais sofisticados e dados cada vez mais abrangentes. O conhecimento científico se expande e se aprofunda, permitindo explicações mais complexas, interdisciplinares e ricas sobre a forma como fatores aparentemente imutáveis — como a geografia — interagem com elementos institucionais e culturais para moldar os destinos econômicos das sociedades.

Referências:

Acemoglu, D., & Robinson, J. A. (2012). Why nations fail: The origins of power, prosperity, and poverty. New York, NY: Crown Business.  (Em português: Acemoglu, D., & Robinson, J. A. (2012). Por que as nações fracassam: As origens do poder, da prosperidade e da pobreza (C. Leite, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Elsevier)

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Alesina, A., Giuliano, P., & Nunn, N. (2013). On the origins of gender roles: Women and the plough. Quarterly Journal of Economics, 128(2), 469–530.

Diamond, J. (1997). Guns, germs, and steel: The fates of human societies. New York, NY: W. W. Norton & Company. (Em português: Diamond, J. (2013). Armas, germes e aço: Os destinos das sociedades humanas (I. M. Filho, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Record.).

Voigt, S. (2009). Institutional economics: An introduction. Cambridge, UK: Cambridge University Press.

Luciana Yeung é Professora Associada I e Coordenadora do Núcleo de Análise Econômica do Direito do Insper. Membro-fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE). Pesquisadora-visitante no Law and Economics Foundation na Universidade de St Gällen (Suíça) e no Institute of Law and Economics, da Universidade de Hamburgo (Alemanha). Autora de “O Judiciário Brasileiro – uma análise empírica e econômica”, “Curso de Análise Econômica do Direito” (juntamente com Bradson Camelo) e “Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos” (coord.), além de dezenas de outras publicações, todos na área do Direito & Economia.

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