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O manifesto das negras africanas contra a mutilação física e social

É uma tomada, uma reapropriação ou uma restituição da palavra? Há muito tempo que as mulheres pretas se calam. Não é tempo de elas (re)descobrirem sua voz, de tomarem ou retomarem a palavra, mesmo que seja apenas para dizer que existem, que são seres humanos — o que nem sempre é evidente — e que, como tais, têm direito à liberdade, ao respeito, à dignidade?

As pretas já tomaram a palavra? Elas já se fizeram ouvir? Sim, às vezes, mas sempre com a bênção dos machos. Então sua palavra não tinha nada de uma palavra de mulher. Ela não dizia da mulher. Ela não dizia nem das suas lutas nem dos seus problemas fundamentais. Antigamente, as mulheres
negro-africanas tinham voz ativa quando se tratava de tomar decisões importantes.

Pensemos em Zingha, uma amazona e guerreira — a primeira a resistir à colonização portuguesa em Angola, no século XVII—, ou em Aoura Pokou, rainha dos baúles.

As mulheres têm que reivindicar a palavra, a palavra verdadeira. Isso não será feito sem dificuldades, pois os privilegiados que a utilizam — os machos — insistem em mantê-la consigo. Teriam eles pressentido um perigo quando se conscientizaram da amplitude dos atuais movimentos de
libertação das mulheres? De qualquer forma, eles reagem.

E advertem as mulheres; eles as ameaçam. Como prova: as observações feitas pelo primeiro-ministro do Senegal, Abdou Diouf, no primeiro Dia da Mulher Senegalesa, em março de 1972: “Vocês recusaram a tentação de um feminismo agressivo e estéril que consiste em se colocarem como rivais invejosas e complexadas dos homens…”.

O julgamento do feminismo está feito. Que Abdou Diouf perceba o feminismo como algo agressivo não tem nada de surpreendente, mas que ele o perceba como estéril prova que não entendeu nada e/ou não quer entender nada. Agressivo, o feminismo é apenas uma agressividade revolucionária.

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E, por ser revolucionário, não pode ser estéril. Certamente, o que aparece através dessa citação e que não é dito é: “Recusem a tentação do feminismo…”. Após essa injunção, o primeiro-ministro senegalês continuou: “… para se posicionarem nobremente como parceiras iguais”. Feita a abstração de qualquer consideração moral, seria bom saber em que consiste essa igualdade.

Como isso se traduz em termos concretos: pela nomeação de algumas mulheres deputadas, pelo acesso de uma ínfima minoria delas à função pública, pelo direito absoluto de explorar e de superexplorar a sua ou as suas esposas, ou pela poligamia instituída em detrimento das mulheres? Pela desigualdade de oportunidades educacionais (recusa em conceder bolsas de estudo, mesmo a alunas de pós-graduação cuja situação o exija)?

Os números da Unesco sobre a alfabetização de meninas na África negra são eloquentes. E a camponesa dos arrozais de Casamance, no Senegal, ela é considerada uma parceira igual pelo “seu homem” ou pelos outros machos senegaleses? A que equivaleria essa igualdade? A uma reversão de poder?

Não. Não é isso o que as mulheres negro-africanas querem no atual momento. Elas desejam uma igualdade de fato em termos de direitos e deveres.
Os homens negro-africanos têm se deleitado por muito tempo, ainda se deleitam, em mistificar as mulheres negro-africanas. É preciso acabar com essa campanha mistificadora.

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Os problemas da mulher negro-africana sempre foram escamoteados, deslocados em sua sociedade, seja por aqueles que estão no governo ou por intelectuais reacionários ou pseudorrevolucionários.

Com a palavra, as pretas

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Não se trata mais de ignorar esses problemas sob qualquer pretexto, e menos ainda aquele que mais frequentemente se opõe a nós: a libertação dos povos negros é muito mais importante do que a libertação das mulheres. Correndo o risco de nos repetirmos, dizemos que o desejo de nos colocarmos
como uma raça, com características específicas em relação a outras raças, não deve, de forma alguma, nos conduzir a uma tábula rasa da condição deplorável das mulheres negro-africanas.

Vamos além do problema racial, pois nos situamos não apenas como mulheres pretas, negro-africanas, mas também como elementos pertencentes à humanidade, independentemente de quaisquer considerações étnicas. Dessa humanidade retemos apenas a existência de classes sociais e de duas categorias de indivíduos: os homens e as mulheres, existindo em uma relação antagônica de dominantes e dominadas.

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Mas isso não é tudo. Reduziu-se — ou melhor, os homens reduziram — muitas vezes o problema das mulheres a um problema de complementaridade. Quem define essa complementaridade? Os homens que nos impõem isso. Essa complementaridade é estabelecida como um sistema, permitindo endossar todas as opressões e explorações que o sistema patriarcal inflige às mulheres na condição de gênero, no que diz respeito tanto aos relacionamentos amorosos quanto à organização do trabalho.

Não será o caso de não só questionar essas coisas, mas também de redefinir todas elas? Não é hora de as mulheres pretas assumirem a imperiosa
tarefa de tomar a palavra e agir? Elas não deveriam conceder a si mesmas o direito de fazer isso, exortadas, guiadas não pelos chefes de governos fantoches patriarcais, mas pelo vivo desejo de pôr fim à sua condição miserável de força produtiva e reprodutiva, superexploradas pelo capital e pelo patriarcado?

Tomar a palavra para enfrentar a situação. Tomar a palavra para dizer sua recusa, sua revolta. Tornando a palavra ativa. Palavra-ação. Palavra subversiva. agir-agir-agir, vinculando a prática-teórica à prática-prática.

Mas quem são as pretas? Muito foi escrito sobre elas e sobre os seus costumes. Raros foram os autores que escreveram sobre elas de forma objetiva. Os homens negros que tiveram a oportunidade de escrever sobre a África negra, sobre a civilização negro-africana, se não se afastaram da mulher preta, no mínimo se importaram bem pouco com ela.

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E, quando se interessavam por ela, era para louvá-la, cantá-la por sua beleza, “feminilidade”, “objeto sexual”, musa e mãe sofredora, ou para analisar suas relações com o homem branco e com o homem negro, ou para julgá-la e relegá-la à categoria de selvagem.

Cantada e louvada, ela o foi pelos cantadores da negritude. Analisada psicanaliticamente, ela o foi parcialmente — em sua relação com o homem branco e seus congêneres — entre outros por Frantz Fanon. Abusada, condenada e/ou desconhecida, ela o foi pelos colonizadores, pelos neocolonizadores e pela maioria de seus irmãos negros.

Mas de que adianta escrever sobre a mulher negra se, ainda assim, não aprendemos quem ela é realmente? Cabe às mulheres pretas restabelecerem
a verdade.

* Awa Thiam é uma filósofa, antropóloga e ativista senegalense, coordenou o movimento Femmes Noires e é autora de Com a Palavra, As Pretas, a ser publicado pelas editoras Zahar e Sesc

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