Quando Gay Talese começou a escrever para o The New York Times, em meados dos anos 1950, seu sonho era dissecar figuras anônimas que, em situações normais, não renderiam manchetes ou grandes artigos. “Como leitor, sempre me senti atraído por ficcionistas capazes de fazer pessoas comuns parecerem extraordinárias. De um ‘ninguém’ conseguem criar um alguém memorável”, escreve o lendário jornalista no livro Bartleby e Eu, que acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras, com bastidores deliciosos de suas reportagens famosas e um texto inédito afiado.
Escrito como um livro de memórias, o título não é ocasional: foi tirado do conto Bartleby, o Escriturário, publicado em 1853 por Herman Melville. Ambientada em um escritório de advocacia, a história acompanha um funcionário que passa os dias cumprindo a tarefa monótona de copiar documentos jurídicos, até que decide desafiar o chefe e não mais fazê-lo. Cidadão comum, o personagem dominou a mente de Talese por anos, forjando nele a bem-vinda obsessão pelo cotidiano que verteu o jornalista em um exímio tradutor de vidas invisíveis. “Eu os conhecia de nome, ou nem isso, alguns com quem não trocava mais que um meneio de cabeça, mas com quem meu caminho se cruzava continuamente enquanto eles faziam seu trabalho como porteiros, caixas de banco, recepcionistas, garçons, carteiros, zeladores, faxineiras e incontáveis balconistas”, relembra ele sobre os “ninguéns” que marcaram sua carreira e fizeram dele um pioneiro do new journalism.

Também chamada de jornalismo literário, a corrente nascida nos Estados Unidos na década de 1960 uniu apuração e escrita narrativa para criar um estilo até hoje inescapável aos bons autores de não ficção. É o que ele adota no inédito “Brownstone do Dr. Bartha”, que encerra a obra. Afiado na medida, o texto parte da tragédia do médico Nicholas Bartha: imigrante romeno, ele explodiu em 2006 seu casarão no Upper East Side, suicidando-se no processo. Narrada por Talese, a história é costurada à voracidade urbana de Nova York — ilustrando como o sonho americano pode ser, ao mesmo tempo, triunfo e ruína.
É ao abrir suas memórias, no entanto, que Talese ganha o leitor. Contador de histórias por essência, o escritor de 93 anos revisita sua carreira revelando bastidores curiosos de seus famosos artigos, de quando ligou para oitenta hotéis atrás da atriz do cinema mudo Nita Naldi (1894-1961) até as conversas com o “O Sr. Má Notícia” — o obituarista Alden Whitman (1913-1990), que não apenas escrevia obituários, mas viajava o país entrevistando figuras com o pé na cova para redigir tributos pós-morte.
Um dos textos do livro, inclusive, é centrado numa reportagem clássica: incumbido de escrever sobre Frank Sinatra (1915-1998), Talese passou mais de um mês tentando entrevistá-lo enquanto acompanhava suas excursões por Los Angeles e tomava chás de cadeira por causa da agenda e de um resfriado do astro. Sem esperanças de chegar a ele, que se recusou a falar, ao menos que revisasse o artigo final, encontrou uma solução célebre: traçou o perfil de Sinatra sem falar com o cantor, descrevendo-o através dos relatos de anônimos que o cercavam. Batizada de Frank Sinatra Está Resfriado, a reportagem é uma das mais famosas do new journalism e escancara o fascínio de Talese pelos invisíveis mesmo ao tratar de celebridades — provando que ele é, antes de tudo, um mestre na arte de caçar boas histórias.
Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2025, edição nº 2961