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O impacto brutal da violência armada na educação

Até hoje, não consigo esquecer a imagem de uma camiseta de uniforme ensanguentada que a mãe do adolescente Marcus Vinícius da Silva, de 14 anos, exibiu quando o seu filho foi morto a caminho da escola, em 2018, durante uma operação policial no Complexo da Maré (RJ). Na época, meu filho era apenas dois anos mais velho que aquele garoto e só ficava imaginando a dor daquela mãe e quantas coisas aquele tiro matou.

Em meados deste ano, a história do menino da Maré foi parar no cinema no longa Meu Caminho até a Escola, dirigido por Diego de Jesus, com roteiro assinado por ele e pela mãe do adolescente, Bruna da Silva. Premiado pelo júri popular como melhor longa-metragem no CachoeiraDoc – X Festival de Documentários de Cachoeira (BA), o filme retrata como a rotina escolar pode se transformar em tragédia para jovens negros e periféricos, como Marcus.

Uma tragédia que, mesmo quando não há tiros e morte, impacta na educação em áreas de controle territorial armado. A diferença de desempenho no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) chegou a alcançar 10 pontos na série histórica analisada (2011 a 2019), o que equivale a cerca de seis meses de aprendizagem, segundo o estudo Educação Sob Cerco: escolas do Grande Rio impactadas pela violência armada, lançado neste mês pelo Unicef, Instituto Fogo Cruzado, Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni-UFF) e Centro para o Estudo da Riqueza e da Estratificação Social (Ceres-IESP).

Quase metade das escolas localizadas em 20 municípios do Grande Rio estão em áreas controladas por grupos armados. Se considerarmos apenas a capital, trata-se da maioria delas (58,4%). Só em 2022 foram registrados 4.400 confrontos próximos a escolas no Grande Rio. Uma escola em São Gonçalo registrou 18 tiroteios – na média, um a cada duas semanas do ano letivo.

“O que a pesquisa mostra é que, mesmo controladas as variáveis demográficas e socioeconômicas, existe um impacto brutal da violência armada”, resume Maria Isabel Couto, diretora de Dados e Transparência do Instituto Fogo Cruzado e uma das coordenadoras do estudo, em entrevista à coluna.

Segundo ela, os efeitos da violência armada vão muito além dos confrontos, que são a faceta mais visível do impacto sobre a educação. “Existem outros mecanismos operando, como o medo de que os confrontos aconteçam”, diz a especialista.

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MEDO IMPACTA NA SAÚDE MENTAL E NA APRENDIZAGEM

O medo gera o chamado estresse tóxico, estado em que o corpo permanece em alerta, com níveis elevados de hormônios como cortisol e adrenalina. Isso impacta a saúde mental e pode atrapalhar o desenvolvimento infantil, trazendo, inclusive, dificuldades de aprendizado.

“Para além disso, há o fato de que a liberdade de ir e vir e de se expressar também é afetada. Esses grupos controlam territórios exercendo a força diretamente ou a ameaça do uso da força”, observa Isabel Couto.

Para a diretora de Dados e Transparência do Instituto Fogo Cruzado, a violência armada opera quase como uma armadilha que prende as pessoas àquela situação, corroendo a capacidade da educação ser um mecanismo de mobilidade social, que cria oportunidades para que essas crianças e adolescentes ascendam socialmente, no futuro.

O relatório mostra que, ao longo da série histórica, alunos de escolas em áreas não dominadas apresentaram resultados melhores tanto em Língua Portuguesa quanto em Matemática nas duas séries analisadas (5º e 9º ano). Nessas áreas também está a menor proporção de estudantes com conhecimentos “abaixo do básico” (cerca de 19%). Já nas áreas controladas pela milícia ou tráfico, os percentuais vão de 22,6% a 38,7%, dependendo da localidade na região metropolitana e do tipo de controle armado.

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Além do desempenho escolar, o controle territorial impacta diretamente na permanência na escola. A análise geral para toda a região metropolitana aponta que, em 2022, escolas em áreas não dominadas apresentaram uma taxa média de abandono escolar no 3º ano do ensino médio de 7,2%, bem abaixo das taxas de áreas dominadas, que variam de 9% a 9,6%. Na capital, esse índice chega a 12,5% em áreas de tráfico.

A insegurança pública tem sido uma das principais preocupações dos brasileiros, um problema que não é só do Rio de Janeiro e que também impacta áreas como saúde e educação.

“As coisas estão conectadas. Só vamos conseguir garantir acesso à educação e à saúde de qualidade para todos se entendemos como a violência armada está afetando esses serviços”, diz a especialista.

REDUÇÃO DE DANOS

Cerca de um terço dos tiroteios que o Instituto Fogo Cruzado registra na região metropolitana do Rio de janeiro tem envolvimento da polícia que, na prática, também é um dos motores dessa violência. “É preciso que as autoridades de segurança pública conversem com as autoridade de educação para criar protocolos que permitam o avanço das políticas de segurança pública sem comprometer a educação ou pelo menos reduzindo os efeitos negativos sobre ela”, reforça Isabel Couto.

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A especialista defende ainda que é necessário que os gestores de educação entendam que eles têm um papel de criar políticas de redução de danos. Políticas que devem incluir capacitação, inclusive para dar conta dos traumas que essas crianças, adolescentes e profissionais carregam, e garantia dos 200 dias letivos.

De acordo com estudo da organização Redes da Maré, no Rio de Janeiro, que já abordei aqui na coluna,  em dez anos uma criança da comunidade perderá, em média, um ano e meio de aula, em virtude de operações policiais.

Dada a gravidade desse cenário, reposição não pode ser enviar exercício para casa de aluno. “Isso não é aula”, lembra a especialista. Segundo ela, pensar em mecanismos e formas de garantir os dias letivos é “absolutamente essencial”. Também é importante investir em produção de mais dados tanto na área da segurança pública quanto da educação.

Não dá para esperar que o crime organizado acabe no Rio de Janeiro e no Brasil para só então começar a agir. “Precisamos investir no fortalecimento da comunidade escolar e das metodologias de ensino para reduzir essas desigualdades, com priorização das escolas afetadas pelo controle territorial armado”, defende Isabel Couto.

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A especialista chama a atenção ainda para a importância de o poder público criar um espaço de diálogo entre educação, saúde, assistência social e segurança pública, para que essas áreas consigam de fato se comunicar e trabalhar juntas. Como mostram as evidências, o problema é grande demais para ser ignorado.

* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.

 

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