Uma ilha vulcânica com menos de 400 000 habitantes – no quesito “população”, perde até para Santos, no litoral paulista, com seus 430 000 moradores – é o país com o maior IDH (índice de desenvolvimento humano) e a terceira nação mais feliz do planeta, segundo a ONU. A Islândia também é a pátria de um dos maiores escritores do século XX, Halldór Laxness (1902-1998), agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura de 1955.
Nesse prolífico autor, pouquíssimo conhecido nestes trópicos, misturam-se as tradições milenares das sagas nórdicas, perpetuadas na voz e nos lares do povo, as paisagens banhadas pelo mar gelado e os encontros e conflitos na transição de um mundo antigo para o moderno – e é aí que o espírito local de seus escritos toca também o universal.
Felizmente, nossa distância da ilha e do grande nome das letras islandesas agora é encurtada com a publicação de Os peixes também sabem cantar, delicioso livro vertido diretamente do original por Francesca Cricelli e Luciano Dutra e lançado pela Editora Zain.
Trata-se de um peculiar romance de formação, com um início arrebatador e um tour pelos arrabaldes da capital, Reykjavík, que acompanha as aspirações de um jovem dividido entre a vida de aldeia, movida pela pesca e pelos causos contados no albergue mantido pelos avós postiços, e a perspectiva de extravasar os limites geográficos e existenciais na linguagem da música – como fez seu “parente”, que virou a celebridade da região.
Na prosa e nos passos de Álfgrímur, entrecortados por versos épicos e canções folclóricas, o herói, se é que podemos chamá-lo assim, não se vê mais diante de inimigos mágicos ou monstruosos. Encara os dilemas do crescimento à medida que seu entorno se moderniza e planta dúvidas e angústias na cabeça daquela gente que atravessa as primeiras décadas do século XX.
Eis a oportunidade de visitarmos um pedaço das terras, dos costumes e da história da Islândia, mas também de se enredar em um romance que, entre a inocência, o encantamento e o desencantamento com o mundo, toca fundo no leitor, não importa de que lugar ele venha (ou de onde esteja).
Uma saga particular em que o brasileiro finalmente poderá embarcar – com direito a conteúdos extras, inclusive musicais, de acompanhamento, para manter a tradição da Zain – graças ao trabalho da dupla de tradutores, que já viveu em solo islandês.
Com a palavra, Francesca Cricelli.

Com alguma frequência, deparamos com alguns questionamentos ou mesmo brincadeiras com o fato de a Islândia, uma ilha com menos de 400 mil habitantes, ter um Prêmio Nobel de Literatura no currículo – enquanto tantas nações maiores, como a nossa, continuam à margem. Se pudesse sintetizar ao leitor brasileiro: de onde vem o poder das letras islandesas?
Acredito que essa questão não esteja ligada só ao mérito literário de um país, de um povo ou de uma língua, há certamente questões políticas e geopolíticas que influem numa premiação dessa estatura. No caso específico da Islândia, ou melhor, no caso de Halldór Laxness, havia um entendimento consolidado na época dentro da Academia Sueca de que ele era sim um dos grandes escritores de sua geração e, mais cedo ou mais tarde, lhe tocaria o prêmio.
Os países nórdicos claramente ocupavam um espaço de destaque desproporcional dentro desse universo literário que gravita ao redor do Prêmio Nobel, algo que talvez tenha sido amenizado com a criação em 1986 do Prêmio Nórdico da Academia Sueca, considerado uma espécie de mini-Nobel e que é de suma importância para os escritores daqueles países – quatro autores islandeses já receberam essa premiação até o momento: Thor Vilhjálmsson (1992), Guðbergur Bergsson (2004), Einar Már Guðmundsson (2012) e Sjón (2023).
Mas, para além das questões políticas, é inegável como a tradição literária islandesa, com destaque para as sagas, seja uma marca presente até hoje na escrita do país, uma tradição que é indissociável da própria história desse povo. Halldór Laxness teve a grandeza de caminhar junto a essa tradição, inovando e enriquecendo a linguagem literária do país, além de pensar em narrativas que fossem muito islandesas e ao mesmo tempo tivessem em seu âmago algo de tão universal a ponto de tocar o coração de um leitor e de uma leitura em outra latitude do mundo.
Ao longo do livro – e no próprio posfácio e no discurso do Nobel publicados ao final do volume – fica evidente como Halldór Laxness bebe das tradições literárias e orais islandesas, convidando-as e confrontando-as ao mundo moderno. Reside aí a força de suas obras?
Laxness criou, em toda sua volumosa obra, personagens com uma grande humanidade, lapidou aspectos sombrios e também extraordinários ao tecer a vida desses sujeitos em suas narrativas. Seus protagonistas são com frequência pessoas comuns, talvez divididas entre uma vida mais tradicional de um “mundo antigo” em transição para um “mundo moderno”. Esse estado de mudança retratado nos conflitos das personagens faz com que suas histórias perdurem no tempo.
Acho que o autor sabia com destreza como construir esses conflitos internos, mantendo um relato certeiro, aguçado, mas também um olhar compassivo em relação à humanidade desses personagens. Um autor que entendia profundamente a história do seu país, que havia também morado fora e poderia ter se tornado um autor que escrevia em dinamarquês, por exemplo, mas que acabou fazendo uma aposta em sua própria língua materna, o que por si só já diz muito sobre ele e sobre essa configuração histórica em que a Islândia ainda se achava sob o domínio da colonização dinamarquesa.
Laxness também tinha consciência de como o passado havia moldado o presente desse país, incorporando os eventos históricos de forma orgânica em suas narrativas, nunca forçadas nem panfletárias. Também acho que manteve um olhar crítico e um pouco satírico, porém não cínico, em relação às instituições, elites políticas, à religião e ao avanço do capitalismo. Acho que ele trilhou um caminho que ainda se observa na literatura islandesa contemporânea, que é justamente beber na fonte da tradição, das sagas e da poesia medieval e, ao mesmo tempo, atualizar essa tradição, aproximando-a do leitor contemporâneo.
No posfácio, vocês contam que, na tradução, optaram por um título menos literal. Pode explicar melhor essa escolha?
Dar título a um livro é algo semelhante a dar título a um filme: com frequência é adaptado ao que se pensa seja mais impactante na cultura local. No caso de Brekkukotsannáll, literalmente “Anais do Casebre da Encosta”, não foi diferente. Ao ler o romance, entende-se que o núcleo central dessa história se passa nessa casa que também é uma forma de albergue situado bem na referida “encosta”, que fica num lugar central na cidade de Reykjavík, entre o lago e o cemitério. Portanto, todas as histórias ali narradas, em paralelo à história central, que é a formação sentimental e o tornar-se adulto do protagonista Álfgrímur, ocorrem nessa “encosta”.
Contudo, em algum momento, no próprio processo de tradução da obra para outras línguas, adotou-se como título a extração de uma fala, ou pelo menos um recorte dessa fala, do magnata Gúðmúnsen, que patrocinava a carreira do cantor Garðar Hólm. De imediato, nos deparamos com a correspondência afetiva entre “Os peixes também sabem cantar” e os versos da Canção de Exílio, de Gonçalves Dias, “As aves, que aqui gorjeiam,/Não gorjeiam como lá”, e esse chiste acabou tornando-se “Os peixes que aqui gorjeiam” no título do nosso posfácio. A decisão de dar título a um livro é sempre um ato editorial em que os tradutores, na melhor das hipóteses, fazem sugestões informadas aos editores a partir do conteúdo da obra original.
Qual é o maior desafio de verter um livro como esse do islandês para o português?
Traduzir do islandês para o português, ou em geral para qualquer língua latina, é também traduzir para um outro mundo linguístico. Se por um lado há muitas equivalências gramaticais entre as línguas, por serem línguas complexas, há também características que se transformam nessa travessia. A estrutura da língua islandesa, como língua nórdica (e portanto, germânica), faz dela uma língua muito concisa. Então, ao verter para o português, acabamos precisando de adendos como artigos e preposições, e é preciso tomar cuidado com as inversões sintáticas que são naturais numa língua em que o verbo, por exemplo, sempre ocupa a segunda posição, e que em português soaria muito estranho.
Além disso, há muitas expressões idiomáticas que precisam encontrar uma correspondência dinâmica no português ou serem explicadas em nota de rodapé. Traduzir do islandês é abrir uma longa caminhada de compreensão e aprofundamento dentro da língua de partida, mas também é testar os limites da nossa língua de chegada. Talvez o maior desafio seja esse: como transpor de uma língua à outra num equilíbrio para respeitar os limites da língua e esgarçá-los apenas um pouco para que nela possa caber alguma notícia desse “outro” que é uma língua tão longínqua e também antiga.
Além de Os peixes também sabem cantar, que outras obras de Laxness mereciam ser conhecidas e apreciadas pelo leitor brasileiro?
Talvez sejamos suspeitos, Luciano e eu, por termos um vínculo afetivo tão forte com a Islândia, mas não hesitaria em dizer: a obra completa, traduzida diretamente do islandês. Dito isso, há alguns clássicos que merecem ser trazidos até nós. Uma delas é Gente independente, epopeia sobre Bjartur, um criador de ovelhas teimoso que luta pela independência numa Islândia rural em decadência, obra que de certa forma captura a essência do caráter islandês e rendeu a Laxness, em boa medida, o prêmio Nobel de Literatura de 1955.
Outra é Salka Valka, romance do começo da década de 1930 que tem como protagonista uma mulher que vive numa vila de pescadores e retrata as lutas da classe trabalhadora. Há ainda A estação atômica, romance que narra a presença militar estadunidense na ilha e tem um forte cunho político.
Por fim, talvez um dos meus preferidos: Filhos da natureza, primeiro romance de Laxness, publicado quando o autor tinha apenas 17 anos, mas que já prenunciava a chegada de um grande escritor, uma obra romântica influenciada por suas primeiras viagens que mostra o despertar de sua voz literária. Embora escrita num estilo bastante diferente de suas obras posteriores e mais maduras que estabeleceram sua reputação internacional, já contém uma semente importante que é esse olhar para as pessoas mais velhas, uma herança da longa convivência com sua avó, algo que vemos também no romance publicado agora pela editora Zain e que o autor explicita nos agradecimentos do seu discurso do Prêmio Nobel.