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‘O futuro da saúde precisa de uma viagem a Marte’, diz médico húngaro Bertalan Meskó

Para o médico húngaro Bertalan Meskó, conhecido como O Médico do Futuro, falar sobre o futuro da saúde é como planejar uma missão a Marte. Não se trata apenas de imaginar foguetes e colônias interplanetárias, mas de projetar um sistema capaz de manter vivo um astronauta a milhões de quilômetros de casa — e, depois, trazer essa lógica de volta para cuidar de pacientes na Terra. Na sua visão, esse é o único caminho para levar a medicina, de fato, ao século 21: usar tecnologias digitais para colocar o paciente no centro, dar a ele acesso irrestrito aos próprios dados e envolver algoritmos que auxiliem decisões em tempo real.

Geek assumido, Meskó cresceu cercado por ficção científica, videogames e computadores montados por ele mesmo. É desse caldeirão “nerd” que ele tira combustível para imaginar um futuro em que consultas sejam assistidas por inteligência artificial, diagnósticos aconteçam em segundos e o médico, liberto de tarefas burocráticas, tenha tempo para a parte mais importante: a conexão humana com quem está diante dele. Para ele, não é tecnologia ou empatia — é tecnologia a serviço da empatia.

Entre uma palestra e outra pelo mundo — como a que fará no Afya Summit 2025, em 23 de agosto, em São Paulo — ele defende que o empoderamento do paciente não é modismo, mas uma espécie de revolução silenciosa. E que a saúde do futuro só vai existir se governos garantirem acesso digital para todos, porque não adianta criar ferramentas de ponta se elas ficarem restritas. Na entrevista a seguir, Meskó embarca em perguntas que vão de ficção científica a políticas públicas, com um pé no presente e o outro pronto para pousar… em Marte.

1. Você costuma se descrever como um “médico geek”. Quando e como percebeu que estava criando esse tipo de simbiose entre o mundo geek e a medicina?

Cresci lendo e assistindo ficção científica, jogando videogames e montando meus próprios computadores pessoais. Posso dizer que meu relacionamento com a tecnologia é profundo. Isso me levou a criar uma profissão após concluir a faculdade de medicina e obter um PhD em genômica. O novo campo combinaria a evolução tecnológica da saúde com os métodos científicos de estudos de futuros. Eu os batizei de ‘estudos de futuros médicos’.

2. No seu artigo “Saúde Digital Faz de Você um Super-Herói!”, você diz que os pacientes podem se tornar super-heróis na era da saúde digital. Mas, em muitas partes do mundo, as pessoas mal têm acesso à internet ou mesmo a cuidados básicos. Como o futuro da medicina pode se adaptar a esse tipo de desigualdade?

Sempre afirmo, em alto e bom som, que a equidade em saúde digital é uma questão de equidade tecnológica. Há milhares de pesquisadores, médicos, pacientes e inventores incríveis trabalhando em soluções de saúde digital baseadas em evidências. Mas como essas soluções podem chegar aos pacientes se eles nem sequer têm acesso à internet, a um smartphone ou a sensores vestíveis? É por isso que cabe aos governos garantir a equidade tecnológica, para que a saúde digital possa cumprir seu potencial de melhorar a vida dos pacientes. Sem isso, de fato, não tem jeito.

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3. Para você, quais são as tecnologias mais promissoras que temos atualmente?

A tendência mais importante, sem dúvidas, é o empoderamento do paciente. Isso significa reconhecer que as pessoas não são apenas receptoras passivas de cuidados, mas participantes ativos no processo de saúde. Na prática, é permitir que tragam suas próprias percepções sobre o corpo, compartilhem dados coletados por dispositivos de saúde, encontrem apoio em comunidades de pacientes e tomem decisões conscientes sobre seu estilo de vida. Ao longo da história da medicina, ouso dizer que isso nunca aconteceu. Mas, se eu tiver que citar uma tecnologia específica, a inteligência artificial se destaca claramente. Ela pode assumir tarefas repetitivas e baseadas em dados, como analisar exames, cruzar informações clínicas ou identificar padrões, liberando os médicos para se concentrarem no que exige olhar humano: o cuidado, a escuta e a tomada de decisões complexas.

4. Mas esse potencial da IA também causa receio em muitas pessoas, inclusive médicos…

Sim, a inteligência artificial está gerando tanto empolgação quanto preocupação, especialmente quando se trata do risco de perder a conexão humana ou de confiar em algoritmos tendenciosos. Porém, eu vejo um risco ainda maior: não conseguir fornecer qualquer tipo de cuidado a bilhões de pacientes simplesmente por causa da escassez mundial de médicos (atualmente, 5 milhões de profissionais de saúde estão em falta, segundo a Organização Mundial de Saúde). Não vejo a IA como uma ameaça, mas sim como nossa última chance de preencher o vazio matemático que a saúde enfrenta: não podemos treinar a quantidade de profissionais de saúde de que precisamos, enquanto o número de pacientes que precisam de ajuda médica continua a crescer. É uma conta que não fecha. Mas se soubermos utilizar essa tecnologia, possivelmente conseguiremos oferecer cuidados melhores.

5. O que o Bertalan do passado acertou sobre o futuro da medicina e o que ele jamais teria previsto?

Acho que previsões têm valor zero, porque implicam que existe apenas um futuro, quando, na verdade, existem múltiplos futuros e temos impacto direto sobre qual deles se tornará real. Por isso, não costumo fazer previsões, mas destaco tendências que, espero, ajudem formuladores de políticas e tomadores de decisão, assim como reguladores, médicos e pacientes. No entanto, falo sobre a importância do empoderamento do paciente desde 2005. Fui um dos primeiros a levantar discussões sobre como o uso do ChatGPT na medicina vai precisar de regras claras para garantir segurança e qualidade. E fui o primeiro a apontar a engenharia de prompts como a habilidade emergente mais importante para médicos. Em termos simples, isso significa saber fazer perguntas e dar instruções de forma precisa para que sistemas de inteligência artificial, como o ChatGPT, entreguem respostas realmente úteis e confiáveis. É como aprender a falar a “língua” da máquina para obter o melhor dela.

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Bertalan Meskó é conhecido como 'médico do futuro'
Fã de carteirinha de ficção científica, Bertalan Meskó é conhecido como ‘médico do futuro’Arquivo pessoal/Arquivo pessoal

6. Se você tivesse 15 minutos com o Ministro da Saúde de um país emergente, o que diria para convencê-lo a investir em saúde digital?

Simples: você não vai conseguir oferecer assistência médica alguma. O aumento dos custos, a escassez de médicos e o movimento de empoderamento do paciente não significam apenas que você talvez queira investir em saúde digital, mas que o risco real é o colapso do sistema de saúde diante desses enormes desafios. A saúde digital e o uso da IA são o único caminho para construir um sistema mais centrado no paciente, resiliente e focado em dados.

7. Como alguém que observa sistemas de saúde no mundo todo pela lente da inovação e da medicina digital, o que chama sua atenção — de forma positiva ou negativa — no modelo brasileiro?

Os sistemas de saúde no Brasil e no meu país natal, a Hungria, são na verdade bastante semelhantes. Ambos têm cobertura universal com enormes desigualdades regionais. Em ambos, o sistema público carrega a principal responsabilidade, com um setor privado menor preenchendo lacunas. E existe um momento favorável para a saúde digital. Mas o que me chama a atenção no Brasil é o entusiasmo de quase 1 milhão de profissionais de saúde em formação, tão dispostos a aprender sobre tecnologias avançadas e e-pacientes [pacientes que participam ativamente do próprio cuidado usando recursos digitais]. Em muitos outros países, tenho que gastar muito tempo apenas persuadindo médicos a mudar sua mentalidade. No Brasil, isso nunca é um problema.

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8. Embora gratuito e universal, o SUS é cronicamente subfinanciado. Como a transformação digital pode se tornar uma verdadeira aliada para esse tipo de modelo?

O elemento mais caro da saúde é o médico. Se um sistema é subfinanciado e há risco de não conseguir fornecer cuidados, esse sistema deve recorrer a soluções tecnológicas, especialmente à IA generativa, porque ela está se tornando comparável em precisão diagnóstica e seu custo é muito menor do que o de médicos.

9. Medicamentos como os agonistas do receptor GLP-1 estão sendo apontados como uma revolução na indústria farmacêutica. Você acredita que o setor está realmente entrando em uma nova era de inovação? Qual é a sua visão para a indústria farmacêutica do futuro?

O entusiasmo em torno dos agonistas do GLP-1 muitas vezes ofusca um ponto importante: o manejo sustentável do peso vai muito além de simplesmente suprimir o apetite com medicação. É aí que entram as soluções de saúde digital, capacitando as pessoas a construir hábitos saudáveis duradouros e sistemas de apoio personalizados que tornam a medicação realmente eficaz. De forma mais ampla, para a indústria farmacêutica, vejo cada vez mais empresas investindo em inteligência artificial para acelerar e aprimorar o design e o desenvolvimento de novos medicamentos. Também cresce a adoção do chamado patient design, que significa criar tratamentos e soluções com a participação ativa dos pacientes desde o início — indo além de apenas “pensar neles” como consumidores finais. Outro movimento importante é o desenvolvimento, dentro das próprias farmacêuticas, de modelos de IA generativa que ajudem a automatizar tarefas do dia a dia, como análises de dados, elaboração de relatórios e suporte à pesquisa. Conversando com as 20 maiores empresas farmacêuticas do mundo, e viajando para diferentes países, percebo que essas são as tendências mais fortes no setor.

10. Na sua opinião, quais são as principais barreiras que impedem que a medicina do futuro se torne parte da realidade cotidiana nos sistemas de saúde?

Apenas a mentalidade de quem projeta a saúde. O empoderamento do paciente já existe há pelo menos duas décadas, médicos do mundo todo estão adotando tecnologias avançadas, muitas tecnologias se tornaram acessíveis por meio das cadeias globais de suprimentos, então o que resta é que formuladores de políticas e autoridades governamentais tornem essa transformação mais fácil, entendendo o que está em jogo e como a tecnologia pode melhorar a relação médico-paciente. Gosto de acreditar que todas as análises e vídeos que publico como Médico do Futuro, e as palestras que faço em eventos como o AFYA Summit 2025, contribuirão para isso.

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