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O filósofo das antigas que é um antídoto à era das redes sociais

“Gemam, exercitem suas línguas infelizes com invectivas contra os bons, abram a boca, mordam: vocês vão quebrar os dentes muito antes de deixar alguma impressão.”

Está metido em um bate-boca no X, aquele que um dia foi o Twitter? Eis acima a advertência do filósofo.

Está seguindo os passos dos influencers do Instagram? Ele deixa o conselho abaixo:

“Nada devemos evitar mais do que seguirmos ao modo do gado que vai atrás do rebanho que já passou, caminhando não aonde se deve ir, mas para onde os outros vão. E nada nos implica males piores do que quando nos juntamos aos rumores, quando julgamos que as melhores coisas são as que foram recebidas com maior concordância, ou quando vivemos com base em muitos exemplos, não da razão, mas da imitação.”

Está (co)movido a exibir sua suposta rotina de glórias e lutas nas redes? O filósofo volta a cutucar:

“Muitos derramam muitas lágrimas apenas para mostrar, e muitas vezes têm os olhos secos quando não há plateia, achando vergonhoso não chorar quando todos choram. Tão fundo este mal se fincou, depender da opinião dos outros, que até uma das coisas mais simples, a dor, tornou-se uma simulação”.

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Ficou mais de uma hora no TikTok e, de repente, percebeu que a vida passou sem lhe entregar nada de muito produtivo ou gratificante? Há mais uma mensagem compartilhada:

 “O problema não é que temos pouco tempo, mas que desperdiçamos muito dele. A vida é longa o bastante, e nos foi dada largamente para realizarmos as coisas mais importantes (…) Porém, quando é gasta em luxo e negligência (…) compreendermos que a vida passou sem que tenhamos percebido.”

Os trechos acima podiam ter sido escritos por algum pensador contemporâneo, mas o filósofo em questão viveu há coisa de 2 000 anos. É Sêneca, um romano que, ao lado de Epicteto e Marco Aurélio, compõe o trio mais famoso dos estoicos, a escola de berço grego altamente rediviva nestes tempos.

Pois muito do que Sêneca fala parece atingir em cheio estes tempos de redes sociais.

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Atemporais, didáticos, pragmáticos – sem perder o apelo retórico -, seus escritos podem ser lidos, sem pressa e pressão, em duas novas edições preparadas pela Goya: Lições sobre a Vida Feliz e Lições sobre a Brevidade da Vida, ambas traduzidas do latim por Rodrigo Tadeus Gonçalves.

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Lições sobre a Vida Feliz, de Sêneca (Tradução: Rodrigo Tadeu Gonçalves; Editora Goya; 224 páginas)Capa: Goya/Reprodução

Nos diálogos ali contidos, Sêneca dá uma aula do que pensa sobre virtude, bem-estar pessoal e coletivo, sabedoria, ócio, prazer, gestão do tempo…

Como a nossa espécie não mudou tanto desde então – ao menos carnal, psíquica e espiritualmente -, o que ele pregou aos romanos certamente se aplica à nossa era digital (com o perdão de alguns preconceitos de gênero cometidos à época). E como se aplica!

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Sobre a Brevidade da Vida, de Sêneca (Tradução: Rodrigo Tadeu Gonçalves; Editora Goya; 256 páginas)Capa: Goya/Reprodução

A apresentação de Lições sobre a Brevidade da Vida fica a cargo de Mateus Salvadori, doutor em filosofia, professor e pesquisador, que ainda tem um dos melhores trabalhos de divulgação filosófica no YouTube e nas redes sociais – afinal, o pharmakon, como diriam os gregos, também pode estar ali, nos canais digitais.

Nesta conversa, ele reflete sobre a potência e a atualidade da obra de Sêneca.

Com a palavra, Mateus Salvadori.

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O professor Mateus Salvadori: mais de 180 mil inscritos em seu canal no YouTubeFoto: Acervo/Divulgação

Por que a obra de Sêneca resiste tão bem ao tempo, conquistando leitores e seguidores ao longo de séculos?
A obra de Sêneca resiste ao tempo porque aborda temas universais e permanentes da condição humana, como o uso do tempo, a finitude, a serenidade e a arte de viver bem. Sua linguagem clara, direta e envolvente aproxima o leitor e permite que suas ideias atravessem os séculos sem exigir formação técnica ou filosófica prévia. Além disso, sua filosofia estoica possui forte aplicabilidade prática, oferecendo orientações concretas para lidar com crises, incertezas e desejos desordenados, servindo como referência ética em momentos de instabilidade.

Outro aspecto fundamental é o fato de Sêneca escrever a partir de uma posição central no poder romano, unindo reflexão filosófica e experiência concreta. Essa combinação de acessibilidade, utilidade prática e autoridade vivida explica por que seus textos continuam a falar com força a diferentes épocas e contextos, mantendo-se vivos e relevantes ao longo dos séculos.

Em que medida seus escritos se distinguem dos trabalhos de outros representantes do cânone estoico, como Epicteto e Marco Aurélio?
Os escritos de Sêneca se distinguem dos de Epicteto e Marco Aurélio, antes de tudo, pelo seu forte caráter literário e retórico. Ele escreve com clareza e intenção persuasiva, transformando a filosofia em discurso público, ao contrário de Epicteto, que adota um tom mais didático e direto, e de Marco Aurélio, que desenvolve uma reflexão íntima e pessoal. Também se diferencia na forma de comunicação, pois Epicteto transmitia oralmente seus ensinamentos a discípulos, que os registraram mais tarde, enquanto Marco Aurélio escrevia para si mesmo como exercício espiritual.

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Sêneca, por sua vez, se dirige diretamente a interlocutores reais por meio de cartas e ensaios, com intenção clara de formar, persuadir e orientar. Outro ponto decisivo é a relação com a esfera política. Epicteto fala a partir de uma posição ética e espiritual marcada pela experiência de ter nascido escravo e lecionar em um contexto distante do poder, Marco Aurélio reflete como governante buscando manter a integridade interior diante das pressões do império, e Sêneca escreve como alguém inserido no centro do poder imperial, lidando concretamente com riqueza, influência e conflito político. Essa perspectiva prática sobre os dilemas da vida pública e privada, somada ao estilo literário refinado e ao diálogo direto com o leitor, confere a Sêneca uma voz singular dentro da tradição estoica.

Alguns trechos de Lições sobre a Vida Feliz e Lições sobre a Brevidade da Vida parecem cair como uma luva para nossos tempos acelerados e pautados pelas redes sociais. Sêneca seria especialmente bem-vindo à nossa era?
Os textos de Sêneca são especialmente adequados ao nosso tempo porque diagnosticam vícios humanos que, embora antigos, se intensificaram com o ritmo acelerado e disperso da vida atual. Sua crítica ao desperdício do tempo encontra eco direto nas distrações constantes e na lógica de ocupação permanente promovida pelas redes sociais. Ao valorizar o cultivo da interioridade e da presença, ele se opõe à superficialidade que domina um cotidiano em que pensar sobre a própria vida se torna cada vez mais raro. Além disso, sua filosofia fornece fundamentos para uma vida conduzida com clareza e presença, permitindo uma relação mais lúcida com o tempo, com os desejos e com a própria existência. Por isso, sua voz não apenas se encaixa em nosso contexto, mas atua como crítica necessária e alternativa concreta a um modo de vida marcado pela pressa e pela dispersão.

O filósofo é assertivo e profético ao ressaltar essa gestão do tempo, não? Por que esse cuidado se tornou ainda mais crítico hoje?
O cuidado com a gestão do tempo tornou-se ainda mais crítico hoje porque vivemos em um cenário de aceleração permanente, excesso de estímulos e fragmentação da atenção. O tempo é limitado e, ainda assim, tornou-se mais vulnerável a dispersões constantes, levando muitos a vivê-lo sem consciência clara de como está sendo gasto. Esse ritmo favorece a sensação de escassez crônica de tempo, mesmo quando ele está disponível, criando ansiedade e uma urgência contínua.

Além disso, a lógica de consumo e de conexão permanente transforma o tempo em mercadoria, capturada por estímulos e distrações planejadas para manter as pessoas ocupadas. Ao afirmar que nada é mais precioso do que o tempo, Sêneca antecipa um problema central de nossa época e indica caminhos para uma relação mais consciente e autônoma com a própria existência, permitindo que cada instante seja vivido de forma lúcida e deliberada.

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