Quando decisões externas nos impõem escolhas internas, a falta de direção estratégica se torna insustentável. O Brasil hesita, não por prudência, mas por indefinição de identidade. Reagimos, mas não sabemos a que ou por quê.
Nos momentos decisivos da história, o que está em jogo não são apenas escolhas de governo, mas o grau de consciência que uma nação tem de si mesma. O Brasil, mais uma vez, se vê diante do espelho e não gosta do que vê.
A recente imposição de tarifas comerciais por parte dos Estados Unidos, sob a justificativa de um litígio político interno ao Brasil, vai além da retaliação diplomática. É um gesto de coerção geoeconômica que, no fundo, testa o alinhamento estratégico do país e sua maturidade institucional.
A resposta brasileira parece firme na forma, mas imprecisa no conteúdo. Defendemos a autonomia do Judiciário, reafirmamos compromissos multilaterais, mas não deixamos claro o que queremos construir. Faltam palavras, mas sobretudo direção.
Neste ponto, vale revisitar a leitura densa e incômoda de Bandeirantes e Pioneiros, de Vianna Moog, que li ainda quando morava nos Estados Unidos. O autor compara os arquétipos fundadores de Brasil e Estados Unidos: de um lado, o pioneiro anglo-saxão, disciplinado, voltado à construção institucional; de outro, o bandeirante luso-brasileiro, solitário, extrativista, afeito à improvisação. Não se trata de metáforas, mas de estruturas duráveis que ainda informam nossa cultura política.
É aqui que o Brasil contemporâneo revela uma ironia perversa: lulistas e bolsonaristas, tão distintos na superfície, operam a partir de uma mesma lógica cultural. Ambos instrumentalizam o Estado como meio de poder. Ambos interpretam a política como disputa por ocupação de espaço, não como pacto de coesão. Ambos falam de nação, mas nenhum define claramente o que isso significa.
A retórica muda. A raiz, não. E é essa raiz, informal, volátil, reativa, que nos torna estruturalmente vulneráveis.
Henry Kissinger, em reflexões que fez ao longo dos anos na diplomacia americana, costumava dizer que países que não sabem o que são acabam sendo definidos de fora para dentro. O Brasil hesita, não por cautela diplomática, mas por ausência de uma narrativa comum. Não temos um eixo que oriente nossas decisões em tempos de crise e, por isso, tudo pode ser justificado. E, ao mesmo tempo, nada é suficiente.
É verdade que há diferenças entre os polos: a esquerda invoca a soberania e flerta com o isolacionismo; a direita prega uma submissão ativa à potência dominante em nome de alinhamento ideológico. Mas ambas as estratégias nascem de um mesmo vazio: o Brasil não sabe onde quer estar porque ainda não decidiu o que quer ser.
O pensamento de Yoram Hazony, atual expoente do nacionalismo conservador nos Estados Unidos, traz uma provocação válida. Para ele, uma nação só existe quando há cultura comum, tradição compartilhada, instituições enraizadas. Em sua visão, o liberalismo internacional corroeu esse tecido nos EUA. No Brasil, a questão é outra: esse tecido nunca foi devidamente costurado.
Por isso, ao sermos confrontados por tarifas que misturam geopolítica, economia e pressão ideológica, não temos resposta que transcenda o imediato. Reagimos como sempre fizemos, com discursos fragmentados, apelos emocionais e apostas táticas de curto prazo. O episódio diz menos sobre os Estados Unidos e mais sobre o Brasil.
O mundo está se reorganizando. As cadeias de valor se redesenham. A política internacional volta a ser feita com brutalidade e clareza. E o Brasil ainda tropeça entre improviso e hesitação, como se o tempo nos pertencesse.
Não se trata de escolher entre Washington, Pequim ou Bruxelas. Trata-se de escolher entre continuar como estamos, um país em disputa permanente consigo mesmo, ou iniciar, enfim, a construção de um projeto nacional que una, comprometa e guie.
O tempo da ingenuidade já passou. Já não basta ter potencial, bons recursos e jovens promessas. É preciso formar caráter institucional, dar densidade às escolhas, construir uma identidade que não dependa de conjunturas. A história não é feita só pelos que vencem eleições, mas por aqueles que entendem que governar é dar forma ao tempo e que um país, como uma vida, só se realiza quando sabe o que não pode mais adiar.
*Gustavo Diniz Junqueira foi secretário de Agricultura do Estado de São Paulo, presidente da Sociedade Rural Brasileira e é empresário do agronegócio