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O escravo que se fez filósofo e acreditou que o saber podia chegar a todos

Epicteto forma, ao lado de Sêneca e de Marco Aurélio, uma espécie de trinca clássica do estoicismo, a antiga escola filosófica greco-romana reavivada pelas ânsias e exigências de nossos tempos. Mas, enquanto Sêneca fora um político de berço privilegiado e Marco Aurélio um imperador, Epicteto (50-135 d.C.) nasceu escravo, tornou-se manco pelas agressões da vida e, ainda assim, inscreveu seu nome na história dos pensadores. 

Ele veio ao mundo e morreu em cidades gregas e seus pensamentos foram anotados ou reunidos por discípulos – e é graças a esse trabalho que hoje podemos contemplar suas ideias. Em Manual do Estoicismo, recém-publicado pela Penguin-Companhia, temos uma seleção dos textos atribuídos ao filósofo, coligidos no Manual propriamente dito, em suas Diatribes e em fragmentos que sobreviveram aos séculos.

Manual do estoicismo

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Não é um livro complicado à primeira leitura (longe disso), embora alguns conceitos e interpretações só possam vir à lume se o leitor apreciar as páginas sem pressa e contar com um guia de viagem. No caso, nosso guia é Aldo Dinucci, que verteu a obra ao português e assina as introduções e notas explicativas.

O professor da Universidade Federal do Espírito Santo é um dos principais especialistas em estoicismo do país e já marcou presença neste espaço por traduzir também as Meditações de Marco Aurélio. Agora, ele dá coordenadas e desfaz miopias sobre a obra do homem que influenciou o imperador romano – esse ex-escravo que claudicou em meio à pobreza e legou um manual para iluminar a humanidade.

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Com a palavra, Aldo Dinucci.

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<span class=”hidden”>–</span>Foto: Vieira Neto/Reprodução

 

Qual seria a grande mensagem de Epicteto? No que esse autor se distingue de outros grandes estoicos, como Marco Aurélio e Sêneca? Epicteto é um dos mais espirituais dos estoicos. Embora alguns reduzam sua doutrina erroneamente à distinção entre coisas que estão sob nosso encargo e coisas que não estão, Epicteto vai muito além. Ao constatar que nossa capacidade de escolha não pode ser externamente constrangida, quer dizer, ao ponderar sobre a liberdade que nos cabe nesse mundo, que é aquela que cada ser humano tem para determinar nossas crenças, desejos, impulsos e assentimentos, Epicteto percebe aí um sinal da Providência Divina, deduzindo que essa liberdade nos foi concedida por Deus e que devemos demonstrar gratidão à divindade por isso. Parafraseando o que ele diz em um de seus textos, “Se eu fosse um rouxinol, eu cantaria as canções dos rouxinóis, mas sou um velho manco, então devo entoar cantos em louvor da divindade, já que vocês não parecem demonstrar gratidão a Deus por suas vidas”.

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Podemos dizer que a obra de Epicteto traz as raízes de uma filosofia minimalista e utilitarista? Falar desse modo seria um anacronismo, pois esses termos foram cunhados em época muito posterior a Epicteto e pertencem a sistemas de pensamento totalmente diversos. Podemos falar em Epicteto de despojamento, não buscando ser minimalista, ou viver com o mínimo, mas buscando a liberdade, não se prendendo a nada que possa ameaçá-la. Assim como um caminhante deve levar consigo apenas o essencial para que o peso excessivo não torne sua caminhada impossível, o estoico, que tem o foco de sua existência na gratidão a Deus e na conquista de sua liberdade, desconsidera as opiniões alheias e tudo o que elas implicam, como ter luxos para ostentar e agradar aos demais, temer desagradar os que pensam diferentemente e pôr de lado, por essa razão, seus próprios anseios e ideais.

Em que medida as “representações” evocadas pelo autor conversam com o conceito das ideias platônicas? Em outras palavras, Epicteto e Platão convergem ou divergem em relação ao conhecimento da realidade? As representações estoicas literalmente se opõem às ideias platônicas. Na República, Platão concebe o inteligível como um âmbito acessível a certos humanos, mas não a todos, concebendo uma utopia vertical com aqueles que podem acessar o inteligível no poder. Para os estoicos, nenhum humano pode ir além da representação, que é formada pelo encontro entre a percepção e o pensamento. Nenhum humano pode vislumbrar a realidade em si mesma, mas apenas representações que estejam de acordo com ela. Como resultado, a humanidade é concebida horizontalmente. Na República de Zenão de Cítio, por exemplo, todos são vistos em pé de igualdade quanto à sabedoria e só há uma classe de humanos. A única sabedoria humana possível para os estoicos é a socrática, o reconhecimento de nossa limitação diante dos deuses. Parafraseando Sêneca em sua obra Da vida feliz, um estoico diria: “Não sou sábio e não o serei. Exige de mim, portanto, não que eu seja igual aos bons, mas unicamente melhor que os maus. Basta-me a cada dia cortar algum de meus vícios e cercear meus desvarios.”

O senhor também traduziu Meditações, de Marco Aurélio. Verter o Manual de Epicteto para o português foi tarefa mais ou menos complexa, se é que é possível compará-los? Foram desafios muito distintos. Epicteto é sistemático em seu pensamento. Sua fala é clara e lógica. O Manual de Epicteto é uma síntese de sua filosofia feita por seu aluno Flávio Arriano, escrito de modo muito sintético. Já as Diatribes representam Epicteto em sua sala de aula, conversando de forma franca e direta com seus alunos. O exercício prévio de tradução de Epicteto me possibilitou traduzir Marco. Nosso Imperador é epictetiano, utilizando vários de seus principais conceitos e distinções. Mas Marco se deixa influenciar também por outros filósofos antigos, como o cínico-cético Bíon de Borístenes, que afirmava que “Tudo é opinião”, dito que Marco repete e supõe ao longo de sua obra. Suas Meditações são um solilóquio, um diálogo consigo mesmo, obra escrita de forma dialética, condicional, assistemática. Um diário contendo suas reflexões pessoais nos dez anos finais de sua vida, escrito em acampamentos militares em fronts de guerra.

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