O governador Tarcísio de Freitas cruzou o Rubicão. Num discurso radical para uma plateia de menos de 50 mil pessoas na avenida Paulista, Tarcísio repetiu o mantra bolsonarista de que o país vive uma “ditadura do Judiciário”, de que Bolsonaro está sendo julgado “por um crime que não ocorreu” e que o Congresso deve votar por uma anistia geral.
“Não vamos aceitar a ditadura de um Poder sobre o outro. Chega”, disse, se referindo ao Supremo. “Não vamos aceitar que nenhum ditador diga o que temos que fazer”. Ao ouvir que a multidão gritava “fora, Moraes”, o governador que sempre evitou criticar nominalmente o relator do processo contra Bolsonaro, cruzou a linha. “Por que é que vocês estão gritando isso? Talvez porque ninguém aguenta mais a tirania de um ministro como Moraes”.
O tom apocalíptico de Tarcísio foi o auge de um ato que chamou mais atenção por uma bandeira gigante dos Estados Unidos no dia da Independência do Brasil do que por uma demonstração de força. Segundo estimativas do Monitor Político do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o protesto da Paulista reuniu 42,2 mil pessoas, menos do que os 45,2 mil de um ano atrás na mesma Paulista. O público de São Paulo ficou até abaixo da reunião bolsonarista de Copacabana, que segundo o Cebrap juntou neste domingo 42,7 mil pessoas.
O discurso de Tarcísio sinaliza a pressa do governador em ser ungido como candidato por Bolsonaro. Atacado nas últimas semanas pelos filhos Eduardo e Carlos Bolsonaro como um oportunista que aguardava a prisão do ex-presidente para que fosse forçado a escolhê-lo como candidato, Tarcísio passou a emular um bolsonarista de carteirinha.
Em entrevista ao jornal Diário do Grande ABC, Tarcísio admitiu pela primeira vez que, se eleito presidente, seu primeiro ato seria dar indulto ao ex-presidente. Para agradar aos extremistas atacou o STF. “Não acredito em elementos para ele (Bolsonaro) ser condenado, mas infelizmente hoje eu não posso falar que confio na Justiça, por tudo que a gente tem visto”, disse.
Neófito na articulação política, Tarcísio se reuniu na segunda-feira com Marcos Pereira, presidente do Republicanos, em São Paulo. Na terça-feira e na quarta-feira, em Brasília, esteve com o Ciro Nogueira, presidente do PP, com o presidente da Câmara, Hugo Motta, além de deputados e senadores do Centrão, para defender uma proposta de anistia que incluísse Jair Bolsonaro, como exigiam os filhos Eduardo, Carlos e Flávio. De volta a São Paulo, ele recebeu o pastor Silas Malafaia em jantar no Palácio Bandeirantes para combinar a manifestação bolsonarista do Sete de Setembro.
Para o público externo, Tarcísio postou nas redes sociais um vídeo distorcendo o histórico da anistia no Brasil e que em dois dias obteve mais de 500 mil visualizações.
A transformação do governador que se apresentava como a direita tecnocrata revirou o jogo político. A anistia, até então um tema restrito ao bolsonarismo de auditório, ganhou um rosto respeitável e uma tração nunca vista.
Pressionado pela presença de Tarcísio, Hugo Motta disse na quarta-feira que poderá colocar a proposta de anistia em votação na semana de 15 de setembro, logo depois da provável condenação de Bolsonaro pelo STF. No mesmo dia, depois de encontro com Lula da Silva, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, disse que não votará nenhum projeto vindo da Câmara, mas um novo, que ele mesmo pretende fazer e que, obviamente, não vai incluir o ex-presidente.
É possível um cenário no qual tanto a Câmara quanto o Senado aprovem textos diferentes de anistia, com o primeiro muito amplo e o segundo apenas incluindo os condenados do 8 de janeiro. Com o impasse, nada aconteceria.
O texto de anistia que os deputados do PL prepararam não apenas anula as condenações de Bolsonaro e os generais golpistas, como ainda protege Eduardo e permite a candidatura de Jair. O texto obtido pelo jornal O Globo prevê o perdão aos condenados por:
- ofensa ou ataque a instituições públicas ou seus integrantes;
- descrédito ao processo eleitoral ou aos Poderes da República;
- reforço à polarização política;
- geração de animosidade na sociedade brasileira;
No aspecto eleitoral, o texto afirma que a anistia alcança “todas as inelegibilidades já declaradas ou que venham a ser declaradas pela Justiça Eleitoral contra os beneficiários desta lei”, ou seja, permite a candidatura de Jair Bolsonaro a presidente em 2026.
Há ainda a previsão de perdão para envolvidos em crimes contra a soberania nacional, o que abarca a situação de Eduardo Bolsonaro.
Em outro artigo, que engloba o 8 de janeiro, o projeto prevê anistia para quem praticou “dano contra o patrimônio da União, deterioração de patrimônio tombado, incitação ao crime, apologia de crime ou criminoso, organização criminosa, associação criminosa ou constituição de milícia privada”.
São virtualmente nulas as possibilidades de o STF considerar constitucional um projeto desses.
O absurdo do texto do PL _ que se aprovado assim tiraria da cadeia os condenados do Comando Vermelho e PCC _ é um indício do risco que Tarcísio de Freitas está correndo ao se colar ao clã Bolsonaro.
Ao longo da semana surgiu uma versão edulcorada de um acordo no qual Jair Bolsonaro aceitaria dar seu apoio a Tarcísio se de fato ficasse livre do processo do golpe. É muita ingenuidade achar que, se vencer o ministro Alexandre de Moraes, a família Bolsonaro vai parar por respeito ao ministro Kássio Nunes Marques, o futuro presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
A corrida de Tarcísio para a extrema-direita é compreensível. O governador tem o apoio de todo o Centrão, mas isso vale pouco sem o aval de Bolsonaro. Mostrar submissão ao projeto bolsonarista da anistia neste momento pode convencer os filhos a não vetarem o seu nome, fato importante no processo de decisão do pai.
Como Felipe Nunes e eu demonstramos no livro “Biografia do Abismo”, o Brasil está profundamente repartido entre lulistas e antilulistas. Por isso, qualquer candidato viável da oposição fatalmente chegará ao segundo turno com chances de vitória, seja ele alguém com sobrenome Bolsonaro ou não.
O risco que Tarcísio neste momento está desprezando é que apoio de Bolsonaro pode lhe garantir uma vaga no segundo turno, mas ser o impeditivo para chegar à vitória. Mais rejeitado que Lula, Bolsonaro foi o único presidente capaz de perder uma reeleição e, no último mês, se tornou ainda mais tóxico com a estultice de Eduardo a favor das sanções contra o Brasil.
Mesmo jornais sabidamente antipetistas subiram o tom contra a submissão do governador ao ex-presidente e seus filhos:
Estadão:
“O julgamento mal havia começado quando, a alguns passos do Supremo Tribunal Federal, caciques partidários e autoridades do Congresso, aos quais se juntou o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, já articulavam um pornográfico acordo político para aprovar um projeto de lei de anistia”.
“É altamente problemático que a principal autoridade do Executivo paulista, com pretensões de presidir a República, expresse desconfiança sobre o Poder Judiciário”.
Zero Hora:
“A anistia articulada por Tarcísio de Freitas é imoral e casuística. Punir de forma didática vândalos da democracia é vacina para a história não se repetir”.
Lógico que os editoriais de jornais significam pouco, mas desprezá-los ao todo é um erro que Bolsonaro cometeria, não alguém que busca a maioria dos votos em 2026. O problema de girar demais para direita é que você pode girar em círculos ao invés de ir para frente.